RESENHA #238: O ORIGINAL E A TRADUÇÃO

AUTORES: Alexandre Dumas e E.T.A. Hoffmann
SINOPSE: É véspera de Natal. Marie se encanta, dentre todos os presentes, por um quebra-nozes em formato de boneco. Ela acomoda o novo amigo no armário de brinquedos – mas, à meia-noite, ouve estranhos ruídos. Aterrorizada, vê seu padrinho, o inventor Drosselmeier, sinistramente acocorado sobre o relógio de parede, e um exército de camundongos invadindo a sala, comandado por um rei de sete cabeças! Contra eles, os brinquedos saem do armário e põem-se em formação. Têm uma grande batalha pela frente, sob as ordens do Quebra-Nozes…
Entre o sonho e a realidade, Marie viverá histórias maravilhosas e estranhas, de reinos, feitiços e delícias. Histórias em que o inusitado padrinho tem um papel especial, e nas quais só pode embarcar quem tem os olhos e o coração preparados. Você tem?

Traduzir é difícil. Para um trabalho bem feito, é necessário que alguns requisitos sejam preenchidos, como: saber o idioma original do texto; saber o idioma a ser traduzido; saber os aspectos culturais das duas localidades; saber como uma ideia deve ser transmitida para que seja satisfatória a tradução. O ato de traduzir é complexo e envolve as particularidades de quem realiza a tarefa.

No entanto, há tradutores que se acham mais do que os escritores originais e montam o texto a seu bel prazer. Pode não ser o caso da maioria, mas definitivamente é a ideia que Alexandre Dumas tem sobre si e seus textos. Em O quebra-nozes, a versão “traduzida” do título de Hoffmann, isso se torna muito claro.

Assim, o primeiro ponto que quero comentar é que, mesmo as histórias seguindo o mesmo curso dos fatos, elas apresentam ideias diferentes entre si. Não é porque os personagens passam pelas mesmas desventuras que as histórias trarão como ênfase a mesma crítica. Esse é justamente o motivo pelo qual a tradução de Dumas é realmente mal feita, pois, nem de perto, trata o mesmo que o escritor alemão.

Dumas se apropria do texto original para traçar críticas sociais à estrutura francesa, ao absolutismo, a Ricardo III, bem como à medicina e ganância. Para além disso, preenche a obra traduzida com diversas frases machistas, algumas racistas e pontua até o que hoje em dia, não na época, entendemos como pedofilia.

Em contraponto, na história original de Hoffmann, temos uma narrativa que está associada à psiquê e à maturação do feminino. Marie, no decorrer da história, entre fantasia e realidade, vai aprendendo sobre si mesma através da mescla desses mundos, que ocorre pouco a pouco. Embora seja possível ter leituras sociais, como o fato de narrativa ter sido escrita no período da unificação alemã (Marie poderia representar a própria Alemanha).

Para além das críticas que separam a tradução e o original, há citações e apontamentos a respeito do tratamento de soldados, principalmente na história de Hoffmann, já que o escritor estava associado aos embates políticos de sua época e, como os irmãos Grimm, queria fomentar o nacionalismo alemão. Também, é claro, há a utilidade dos brinquedos e como eles auxiliam na permanência da estrutura patriarcal, pois Marie ganha bonecas e vestidos; Fritz, soldados. Não obstante a isso, temos a figura da irmã mais velha que vira governanta na tradução francesa, mais uma reprodução da estrutura machista.

Ambos os textos tratam sobre uma data comemorativa, no entanto, há diferenças claras de como essas comemorações se dão. Dumas deixa algumas destacadas, esquecendo de apontar a diferença religiosa entre as duas nações: católica e protestante. Assim, o escritor francês também pontua o poder político de um prefeito; enquanto Hoffmann o faz com a figura do médico, pois ser intelectual na Alemanha da época detinha poder significativo.

As versões lidas de O quebra-nozes estão presentes na edição de bolso de luxo da editora Zahar. Ela conta com uma diagramação confortável e diversas ilustrações da época. Além disso, há uma apresentação muito boa de Priscila Mana Vaz, bem como conta com uma excelente capa feita por Rafael Nobre, comum a linha Clássicos Zahar.

REFERÊNCIA

HOFFMANN, E.T.A.; DUMAS, Alexandre. O Quebra-nozes: edição de bolso de luxo. Tradução de André Teles; Luís S. Krausz. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.