CRÍTICA #20: A EMOÇÃO DE UMA DESPEDIDA

 

SINOPSE: Após Thanos eliminar metade das criaturas vivas, os Vingadores precisam lidar com a dor da perda de amigos e seus entes queridos. Com Tony Stark (Robert Downey Jr.) vagando perdido no espaço sem água nem comida, Steve Rogers (Chris Evans) e Natasha Romanov (Scarlett Johansson) precisam liderar a resistência contra o titã louco.

 

DIRETOR: Anthony e Joe Russo (2019)
GÊNERO: Ação, Aventura e Fantasia.
DISTRIBUIDOR: Disney | EUA

Tudo que é bom possui um final. Toda jornada que começa, acaba tendo seu fim, porque absolutamente nada é eterno nessa vida, ao menos, é a nossa premissa existencial, pois é através da limitação dada pela não-eternidade que encontramos sentido, beleza e buscamos nos eternizar através de nossos feitos.

Foram muitos anos acompanhando quadrinhos e conhecendo personagens incríveis, criados por autores como Stan Lee que marcaram a nona arte, ou o próprio Neil Gaiman com Sandman, por exemplo. Ao mesmo tempo em que passei anos aficionada por essas histórias, a Disney – como outros estúdios –, detentora dos direitos de alguns personagens da Marvel (editora), começou uma inovação – dentro do cinema em si, no caso – de interconectar filmes (fazer crossovers) já há muitos anos presentes nessa arte tão desvalorizada por críticos de renome.

Muitos podem acreditar que a inovação começou a partir de uma ideia da Disney e, qualquer história anterior, com um pouco de afinco, poderia criar essa interconexão (embora possamos encontrar referências nas animações, as conexões só ficam nas teorias dos fãs), entretanto, essa ligação de histórias é própria dos quadrinhos e, muito provavelmente, foi através dela que o estúdio teve essa ideia. E, não podendo ser diferente, a Disney trouxe – através da Marvel Films, anos depois, nomeada como Marvel Studios (MCU) – para o mundo diversas tramas surpreendentes (ou nem tanto), que foram sendo conectadas e, por fim, fazendo parte e criando todo um universo cinematográfico extenso e complexo.

Após onze anos do início dessa iniciativa, o estúdio finalmente está prestes a encerrar a terceira fase de suas produções adaptadas de quadrinhos, faltando somente o segundo filme do Homem-Aranha: Longe de Casa. A partir dessa quarta fase, espera-se que muitos personagens, vinculados a Fox, empresa recém comprada pela Disney, deem as caras e tornem o universo ainda mais incrível e mais similar as obras que adaptam, além deles, outros personagens já conhecidos do MCU ganharão séries específicas para eles no novo serviço de streaming da companhia.

Mas o que tudo isso tem a ver com a última produção cinematográfica de Vingadores? Bem, absolutamente tudo, pois o filme inteiro é uma ode ao passado glorioso dessas figuras tão marcadas nas telas e, por conta disso, boa parte dele é fanservice.

Existem cenas já canônicas nos quadrinhos que farão alguns fãs, como eu, literalmente, chorar e gritar ao assistir à produção. Outras, tão emocionantes quanto, deixarão saudade e marcarão toda uma trajetória como um ponto final. Avengers: Endgame (ou Vingadores: Ultimato) é um filme que, por si mesmo, não é épico – além das incríveis lutas –, ele se torna épico porque existe uma bagagem profunda por trás, da mesma maneira que o retorno a Ítaca de Odisseu deixa uma marca in media res, ou seja, no meio das coisas, porque o seu retorno demora vinte anos para acontecer.

Não somente através da Odisseia que podemos conectar esse filme com a Antiguidade, mas também a partir da Ilíada em que a construção de herói se prontifica e se transforma da mesma maneira que ocorre com Aquiles: os heróis apresentados são parte intrínseca de seu tempo e de sua sociedade, eles são o ponto de partida e a sua ira é tão tema da narrativa quanto ao do herói grego.

Entretanto, o que move os personagens não é a ira, mas a perda. Todo o filme é trabalhado em cima da perda: não somente da perda dos personagens e entre os personagens, como a nossa perda quando chegarmos no final da trajetória, ou melhor, no final do filme. Inclusive, acredito que esse seja, entre todos os pontos positivos do filme, o mais alto, pois é esse fanservice o que nós queremos ver como fãs; essa conexão, tal como entre os filmes, dos personagens e do telespectador que faz com que, assistindo ao filme, não percebamos os múltiplos furos e problemas do roteiro.

Confesso que, dentro do cinema, as emoções eram tão fortes e profundas que eu não consegui notar os erros ou os problemas, porque estava mais preocupada com as trajetórias, as vivências dos personagens e o que eu realmente desejava ver. No entanto, assim que eu consegui me distanciar do filme, foi impossível não perceber a enxurrada de informações incoerentes passadas.

Os furos de roteiro são tantos, que os diretores/roteiristas estão tendo que dar explicações a todo momento de suas mirabolantes ideias e, mesmo assim, nem sempre estão convencendo. Dessa forma, por mais que as emoções levem ao delírio, o roteiro joga qualquer raciocínio lógico no precipício a partir de problemas como: evolução de personagens, como Thor, por exemplo, que passa por diversas perdas durante toda a construção de sua narrativa e vai se formando líder até Thor 3, em que chega ao ápice de seu entendimento do que realmente importa, ou Nebulosa que, em Guardiões da Galáxia 1, na primeira oportunidade, vira as costas para o seu pai; a falta de coerência na formulação de estratégias para derrotar o vilão necessário no momento ideal; as construções de lutas, em que já foi visto em filmes anteriores as habilidades dos heróis de maneira mais clara, o que acaba tornando incoerente parte da própria batalha; a falta de personagens icônicos e importantes em certas partes do enredo, por mais que seja compreensível a necessidade de destacar algumas figuras, existiam maneiras mais plausíveis de elaborar o roteiro; o exagero do fanservice, por mais que seja do meu agrado, afinal, eu sou fã, não pode ser o único aspecto que importa na construção de um filme, tornando tudo conectado a emoção e aos personagens em destaque do que realmente ao roteiro, ao que literalmente faz sentido; o exagero de humor em cenas desnecessárias, o que torna alguns diálogos fracos e mal explicados; e, por fim, numa crítica pessoal, por mais que eu entenda que o filme se trata sobre uma despedida para uma formulação inicial dessa produção, ainda assim, o final dos quadrinhos – e quem finaliza – traz muito mais coerência para toda uma trajetória de personagem.

Uma coisa que não ficou muito clara, tanto para os fãs quanto dentro da produção, é se os roteiristas elaborariam – ou não – a ideia de multiverso. Para quem não é fã de quadrinhos ou de ficção científica, a formulação do filme quanto a temporalidade e viagem no tempo pode parecer um tanto confusa, visto que há diversas teorias quanto a isso.

Por exemplo, em narrativas como Matadouro 5, Arrival ou The Umbrella Academy, o tempo tem uma noção de simultaneidade, ou seja, todos os fatos ocorrem no mesmo instante e não existe a noção de livre-arbítrio, pois tudo ocorre na mesma hora e não há como mudar as ações/acontecimentos (por mais que exista a tentativa de mudá-las em alguns contextos, claro, sempre acaba dando no mesmo). Outra explicação de temporalidade é apresentada em obras como De Volta para o Futuro e em muitos dos episódios de Doctor Who, nesse tipo de explicação, o tempo é ministrado a partir de ações que geram reações, numa lei física, ou seja, cada mudança ocorrida no passado gerará uma consequência direta no futuro, pois se o passado é modificado, o futuro não terá como ser o mesmo. Nesse tipo de explicação de tempo linear, existem regras, tal como ocorre em Harry Potter com o vira-tempo da Hermione, de que você não pode encontrar a si mesmo e nem mudar o decorrer das ações, como acontece em Flash Point, em que Barry tenta salvar a sua mãe e o futuro é outro completamente diferente.

Contudo, na situação da linha de heróis da DC Comics (melhor explicado na base dos Novos 52), como também nos quadrinhos da Marvel, há a noção de temporalidade que cria multiversos, ou melhor, linhas temporais paralelas, em que o futuro não se modifica por mais que você volte ao passado e o mude. Embora muitas pessoas possam não lembrar, esse tipo de noção de temporalidade também aparece em Doctor Who, quando David Tennant ainda é o décimo Doctor. A ideia de multiverso é de que há diversas linhas temporais e, em cada viagem que se faça para o passado e as ações ocorridas nesse passado o modifiquem, cria-se mais uma linha do tempo e não altera a sua linha do tempo.

Numa tentativa de explicação mais clara, podemos pensar no seguinte, se eu volto para o passado depois de ter criado esse texto e, no passado, eu me impeço de escrevê-lo, terá uma linha temporal, na qual eu escrevi o texto sem interferência, e outra, uma que eu não escrevi o texto porque eu mesma me interrompi. A maioria dos quadrinhos, com exceção de algumas obras como The Umbrella Academy, usufruem dessa lógica para que se possa mudar autores, modificar histórias, mudar casais, posicionamentos de personagens sem que afete produções anteriores que ainda são consideradas canônicas, como acontece com as 52 realidades paralelas da DC Comics (por isso, Novos 52). Todas as obras se tornam canônicas, por mais que numa versão dos quadrinhos, a Garota Esquilo ganhe o Thanos e outra seja a Nebulosa, por exemplo. Uma vitória não nega a outra, embora a primeira seja bem absurda.

A opção adotada pelo filme, de acordo com uma informação externa dos diretores/roteiristas, é a última teoria, no entanto, durante o longa, a explicação além de não ser clara, nega a si mesma no diálogo e na imagem exibida para exemplificá-lo, visto que, durante a trama, há duas conversas que trabalham a ideia de temporalidade no filme: a primeira, nega a teoria de ação e reação do De Volta para o Futuro de maneira clara, abrindo nitidamente para a ideia de multiverso; a segunda, no entanto, torna evidente que há uma relação entre a presença de certos elementos na linha temporal e a mudança temporal em si, a partir da conversa entre dois personagens. Na busca de compreender como irá defender a sua realidade, a conversa entre esses dois se torna ambígua em relação a maneira em que viagens temporais alteram a realidade. A partir do explícito dentro dessa explicação secundária é que a presença de elementos dentro do tempo não alteram o futuro, ou seja, não são as ações dos personagens que vão modificar o tempo ou criar ramificações de linhas temporais (multiversos), mas sim a presença de certos elementos que irão criar ramificações temporais, dessa forma, se os elementos necessários para que aquela ação ocorra estejam presentes na linha do tempo, a própria linha do tempo irá se reajustar para chegar no mesmo futuro, o problema do filme é continuar a explicação de linhas temporais e se centralizar em apenas elementos específicos e explicar apenas a partir desses elementos em questão, deixando em aberto as outras mudanças temporais ocasionadas no filme. Contudo, os diretores/roteiristas disseram que a ideia era criar a noção de multiverso, o que não foi – definitivamente – apresentado no filme (de acordo com a explicação da segunda conversa).

Contudo, mesmo levando em consideração o que foi dito pelos diretores/roteiristas da produção, ainda assim, há erros de construção temporal (ou de continuidade), como ocorreria se utilizasse qualquer outra teoria já conhecida, justamente porque a ênfase da produção não era um roteiro impecável, mas uma comoção do público.

O que me incomoda nisso é que a produção esqueceu o brilhantismo da fotografia, que pode gerar o mesmo impacto; esqueceram as atuações impecáveis, alguns mais do que a de outros, como a do Capitão América (Chris Evans) ou da Viúva Negra (Scarlett Johansson) ou o próprio Homem de Ferro (Robert Downey Jr.).

Esse filme é uma montanha-russa de altos e baixos, infelizmente, para uma produção dessa magnitude, um encerramento de um ciclo, sinto que foram mais baixos do que altos, isso, é claro, depois de sair do cinema e ter chorado através do fanservice.     

 

REFERÊNCIAS

STARLIN, Jim; RON, Lim; MEDIDA, Angel. Box Thanos: Trilogia do Infinito. São Paulo: Panini, 2019.