RESENHA #86: É ASSIM MESMO.

 

AUTOR: Kurt Vonnegut

SINOPSE: Assim como Billy Pilgrim, o protagonista de Matadouro-Cinco, Vonnegut testemunhou como prisioneiro de guerra, em 1945, a morte de milhares de civis, a maior parte deles por queimaduras e asfixia, no bombardeio que destruiu a cidade alemã. Billy tinha sido capturado e destacado para fazer suplementos vitamínicos em um depósito de carnes subterrneo, onde os prisioneiros se refugiaram do ataque dos Aliados. Salvo pelo trabalho, depois de ter visto toda sorte de mortes e crueldades arbitrárias e absurdas, Billy volta à vida de consumo norte-americana e relata sua pacata biografia, intercalando sua trajetória aparentemente comum com episódios fantásticos de viagens no tempo e no espaço.

 

A vida, muita das vezes, é assim mesmo; o problema pode estar em quanto a ficção nos romantiza tudo, principalmente, quando os temas são o amor e a guerra. Quantas vezes ficamos apaixonados por personagens irreais? Ou nos encantamos com os heroísmos no meio de uma guerra ou de um bombardeio?

Vonnegut, nessa obra, fez com que eu repensasse absolutamente toda a minha vida literária, todas as experiências que eu tive com Tolkien e Cornwell, até as mais simples e românticas, como os Darcy’s da literatura da Jane Austen. São histórias incríveis, bonitas e cheias de aforismos, porém, ao mesmo tempo, não são tão plausíveis quanto nós gostaríamos de acreditar.

Nesse entremeio, há a divisão entre a ficção e a realidade.

No decorrer de sua obra, Matadouro 5, há uma mescla constante entre a ficção científica e a verdade nua e crua da guerra, que joga crianças em meio a bombardeiros, como o que ocorreu em Dresden (considerado pior que Hiroshima e Nagasaki) ou, ainda, durante toda a história do mundo. Muitas pessoas se recordam do nome do livro como o âmbito em que Billy Pilgrim ficou preso, entretanto, há outro título a ser memorado: A Cruzada das Crianças.

Se dentro de obras fantásticas de guerra encontramos supersoldados como Capitão América, em histórias cotidianas, deparamo-nos com filhos ou netos que ainda não sabem definir bem o que é certo ou errado, menos ainda, o que eles estão fazendo ali. Em meio a metáforas e frases explícitas, Kurt Vonnegut traz para nós o cerne do pensamento antiguerra com uma lógica atemporal: não existe momento na história da humanidade em que não seja importante relembrar o quanto a guerra é nociva e tóxica. Entretanto, de acordo com um pensamento anterior, num período da Antiguidade, a guerra era parte da vida cotidiana, muito embora alguns autores, como Eurípides, condenassem essa maneira de vê-la já naquele período.

A ideologia em relação a guerra, no pensamento euripidiano, demonstrado em As Troianas e em Hécuba, é nitidamente antiguerra, apresentando o ponto de vista de mulheres que perderam não só o seu lar, mas a sua família. O mesmo ocorre em Matadouro 5, muito embora, dentro da obra que elabora a Segunda Guerra Mundial, a presença feminina não tenha tanto destaque quanto eu gostaria, por mais que o livro seja dedicado a uma mulher incrível que soube dizer, antes de muitos homens, o quão as crianças foram levados a lutar. Ambos os autores são pontos de referência, em tempos tão afastados, de como a guerra traz males irreversíveis a vida cotidiana. Se romantizamos a guerra tal como Homero ou Martin, não pensamos nos seus mais drásticos deslizes e, para o autor de A Cruzada das Crianças, esse é um dos maiores desserviços a serem feitos.

Para toda uma geração.

O interessante da obra de Vonnegut é que o autor trabalha esse pensamento tão cru e tão pontual através de uma escrita simples, sem rebuscamentos ou complicações. O escritor tem a noção de que, o que muitos esquecem ao escrever uma obra complexa e cheia de posicionamentos, é que, se uma história quer transmitir uma mensagem importante, ela precisa ser acessível a massa, ao público geral para surtir algum tipo de efeito. Existem, durante as pesquisas a respeito dele, alguns produtores de conhecimento que condenam a sua forma poética e literária, mencionando-o como pouco rebuscado, pouco metafórico e até sem um estilo próprio, porém, ao meu ver, tudo é extremamente proposital para que o público – simplesmente – entenda a sua mensagem, tanto que se transformou em um best-seller americano. E, por incrível que pareça, há aqueles que não notam o pensamento crítico antiguerra do autor como cerne narrativo, por mais explícito e escancarado que seja.

Em meio a sua escrita e o seu sarcasmo, há de precisar como funciona a temporalidade de sua narrativa. Vonnegut constrói um universo temporal muito bem esquematizado enquanto vai e volta no tempo, às vezes preso no ápice da Segunda Guerra Mundial; às vezes, preso fora do nosso mundo, ao lado dos tralfamodorianos e uma atriz pornô. Se a guerra faz sonhos desaparecerem, pode, em oposição, criar consequências terríveis e traumáticas para os que a vivenciam, como em O Amuleto, de Bolaño, no qual não se sabe se Auxilio está vivendo tudo no banheiro feminino da Faculdade de Filosofia e Letras, ou, na verdade, está do lado de fora enquanto não consegue seguir em frente com a própria vida. O personagem Billy Pilgrim vive o mesmo dilema, contudo, após um acidente de avião, passa a dar explicações inimagináveis, relacionadas a ficção científica de certo autor, a respeito de seus problemas (ainda que ele argumente que só resolveu falar depois, quando achou que era o momento certo). Nesse tempo, ao que parece, foi a literatura a precursora e a salvadora de um problema, mas também possivelmente a causadora dessa situação.

O optometrista se encontra em uma explicação temporal que exclui completamente a noção de livre-arbítrio e isso mostra o quão importante é tomarmos decisões por nós mesmos e avaliarmos a nossa vida antes de pensarmos em dar um passo. Será que iriamos a uma guerra se não fossemos obrigados? Será que ir a guerra é de fato necessário? Por que guerrear? Quem decide isso por nós? Será que existe a liberdade de escolha quando somos meras crianças empurradas para a guerra, meras crianças que acreditam estar servindo a um país, o qual lota todos os lugares da cidade com propagandas de alistamento e transformando os inimigos em vilões tão caricatos quanto os dos desenhos animados?

Matadouro 5, além de não ser uma biografia precisa, apresenta informações que parecem não proceder por completo quando se busca compreender historicamente o atentado em Dresden, afinal, essa obra também é ficção, no entanto, o cerne filosófico necessário para entender porque a guerra não é certa, justa, boa, heroica ou algo que ninguém deveria buscar ou desejar, está lá.

Billy Pilgrim não é Kurt Vonnegut, como é deixado bem claro no livro. Contudo, também o é, como é qualquer criança que foi jogada em uma guerra sem preparo algum. É um livro crítico, profundo e, ao mesmo tempo, de uma simplicidade assustadora. O texto é dividido em fragmentos e, cada fragmento, conta com uma história que termina em um é assim mesmo, porque a vida é assim mesmo: ela é catastrófica, geralmente não acaba bem e alguém morre. É assim mesmo.

A edição da Editora Intrínseca, especial de cinquenta anos de lançamento da obra, está muito bem diagramada, visto que a sua simplicidade se relaciona diretamente à forma com que o texto é apresentado, com bastante espaço na página para não cansar leitores desacostumados, além disso, separando bem nitidamente as passagens temporais. A capa é dura e o design dela mescla muito bem as cores: o branco, da paz; o azul, do céu; e o vermelho, que simboliza o sangue, ademais, traz aviões-bomba e um alvo, um alvo – infelizmente – vivo.

É assim mesmo: psicodélico, ficcional e real ao mesmo tempo. 

 

REFERÊNCIAS

VONNEGUT, Kurt. Matadouro-Cinco: ou a cruzada das crianças, uma dança compulsória com a morte. Tradução de Daniel Pellizzari. 1ª edição. Rio de Janeiro, Editora Intrínseca: 2019.