RESENHA #79: O MENINO E O HOMEM

AUTOR: Fernando Sabino

SINOPSE: A literatura brasileira ganha um novo personagem. Tom Sawyer, Mogli, Alce, Gulliver, Pinóquio e o Pequeno Príncipe tem um companheiro entre nós: o menino Fernando, que vem a ser o próprio autor, a viver todas as fantasias de sua infância em aventuras mirabolantes. Ensina uma galinha a conversar, aprende a voar com os pássaros, fica invisível, encontra-se com Tarzã e Mandraze, visita o Sítio do Picapau Amarelo. E, no menino que se vê no espelho, descobre o melhor de si mesmo, a projeção do ideal de pureza que só uma criança pode alcançar – simbolizada, de maneira luminosa, na libertação dos passarinhos.Um mundo mágico de surpresa e deslumbramento, desvendado por um Fernando Sabino com maestria – um romance para ser lido, com igual encantamento, por crianças e adultos.

 

O homem disse que tinha de ir embora – antes, queria me ensinar uma coisa muito importante:
– Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto de sua vida?
– Quero – respondi.
O segredo se resumia em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus ombros e olhos nos meus olhos:
– Pense nos outros.

 

A primeira vez que eu li O menino no espelho, eu estava no ensino fundamental e tinha a idade do Menino. Não escolhi essa obra por livre e espontânea vontade, na verdade, ela foi uma das leituras obrigatórias da escola. Mas, independente da forma como o livro chegou até mim, as palavras simples de Fernando Sabino me encantaram e a história acabou por me marcar profundamente. Tanto é que, este mês, quando a parceria com a Livraria Leitura me fez reencontrá-lo, não pensei duas vezes antes de abraçar essa oportunidade de releitura. Por mais que o tempo tenha passado e outrora eu tenha tido acesso as peripécias do Menino Fernando, foi o como se eu o estivesse lendo pela primeira vez.

Uma das coisas mais valiosas que a literatura me ensinou é que o complexo às vezes reside nas palavras mais simples. O menino no espelho é assim. A obra é composta pelas traquinagens de infância do pequeno Fernando, as quais possuem capítulos exclusivos para cada uma delas e, juntas, formam um conjunto de memórias da magia que é ser criança. Digo magia porque a narrativa de Sabino é repleta do colorido mágico da imaginação. Ao longo das páginas, torna-se claro para o leitor que as coisas não transcorreram como o narrador as pinta, sua memória é deturpada justamente porque, ao transcrever cada mínima parte de sua infância, Sabino volta a ela do melhor jeito que pode: através do texto. No entanto, é justamente o fato de estar além do crível que a história se torna incrível.

Por suas características e mesmo pelas palavras do autor, O menino no espelho é considerado uma autobiografia. Considero, contudo, esse fato como secundário dentro do todo que a obra representa, porque a riqueza desse livro reside mais nas reflexões que suscita a respeito da identidade entre o menino e o homem – ou seja, das experiências da infância e como elas moldam o adulto – do que no fato de contar ou não a “verdade” sobre a vida do autor.

Com efeito, como se trata de um livro de memórias, é difícil falar em verdade, por isso, as aspas. As lembranças humanas estão sujeitas não só ao esquecimento, como também à manipulação. Por exemplo, recordamos as coisas boas e os grandes feitos com mais glória do que tiveram, da mesma maneira, raramente somos os vilões de nossa própria história, mesmo quando erramos. Todo reconto do passado é uma ficcionalização, e, no caso de Sabino, uma ficção de si mesmo.

Contudo, ainda que não seja o mais importante, o fato de trazer aspectos da vida do autor implica trazer, também, aspectos da realidade de sua época; além de termos a possibilidade de conhecer outras perspectivas e formas de falar em relação a tópicos como: as relações amorosas e a representação das mulheres e dos negros. Tudo isso sempre é enriquecedor.

Embora muitas vezes os leitores enxerguem o prólogo e o epílogo como partes auxiliares, em O menino no espelho, elas são essenciais, pois dão a dica do que o livro será: um ciclo ou um elo que une a infância e a vida adulta. O livro é, principalmente, sobre o (re)encontro consigo mesmo, com o tempo vivido e perdido, com a magia que mora essencialmente na infância e que, quando adulto, é muito difícil recuperar.

Encontro e identidade são, na verdade, as chaves de leitura da obra, porque narrar a si mesmo, é, também reencontrar-se. No caso de Sabino, uma parte de si é fato e outra é ficção. Nesse tempo, a infância vai longe, mas as memórias a reaproximam e deixam aquela saudade da época que foi, embora já não mais com a veracidade do que acontece no momento e, sim, com o gosto que só as (re)lembranças podem ter.

Contudo, devemos recordar sempre que Sabino é um escritor e seu ato de fabular é não só parte do seu eu-criança, mas do seu eu-futuro, que diante do ofício de lembrar o passado, não esquece o essencial da infância: fantasiar, transfigurar a realidade em favor da diversão. Desde sua infância, é nítido que não carecia de imaginação, independente se trata de uma autobiografia elaborada pelos resquícios da memória ou por confabulações do que, em seu tempo de criança, pensava de suas vivências. A imaginação de Sabino, aliada a diversos símbolos, é o elemento propulsor não só para as narrativas e as traquinagens do eu-criança como para ser um grande e famoso escritor no eu-futuro.

Os diversos símbolos do texto, como a água, o espelho e o vidro, inclusive, são essenciais para captar essa reflexão acerca do passado e do presente que constantemente se encontram, visto que, ao serem lidos juntos, a ideia de refletir e enxergar a si mesmo no agora, para além ou para trás – ou seja, o eu no presente, no passado e no futuro –, parecem-me, além de nada fortuitas, muitíssimo importantes nas cenas em que aparecem. Na sua presença, coisas importantes, que provocam o crescimento do Menino e, portanto, do Homem que um dia será, acontecem.

Imaginar na infância, deu-lhe, acima de tudo, a capacidade de sonhar no futuro e são esses sonhos em forma de texto que chegaram até nós, pois, como o próprio texto demonstra, a arte de sonhar é um ciclo que não se resume a uma fase ou um período de tempo, por mais que muitos queiram acreditar nisso. Essa é, sem dúvida, uma das lições mais agradáveis nessa obra que se volta para o público infantil, sem jamais excluir os adultos sonhadores e criativos.

Da primeira vez que eu li, eu tinha a idade do menino. Agora, relendo, ocupo a posição do homem. A sensação é de encantar-me duas vezes. Por isso, se eu pudesse voltar ao passado e dizer algo àquela Letícia de nove, dez anos, seria: leia, leia esse livro com vontade. Ele vai fazer toda a diferença na sua vida.

 

REFERÊNCIAS

SABINO, Fernando. O menino no espelho. 108ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2018.