RESENHA #34: GERÚNDIO LATINO-AMERICANO

 

AUTOR: Roberto Bolaño
SINOPSE: Trata-se da invasão do campus da Universidade Nacional Autônoma do México pelas tropas do exército, nos agitados dias de 1968. E da resistência silenciosa de uma personagem que, escondida no banheiro feminino da Faculdade de Filosofia e Letras por muitos dias, escapa da fúria repressora dos invasores. Esta personagem – um misto de artista meio hippie, louca e andarilha – é a imigrante uruguaia Auxilio Lacouture, auto-intitulada “mãe dos poetas e da poesia mexicana”.

Existem coisas que vivem fora e dentro do tempo, podemos considerar que tudo que é terreno vive e permanece no tempo porque ocupa espaço, no entanto, há aquilo que já foi, mas é tão presente que parece que ainda é. O Amuleto, livro de Roberto Bolaño, passa-me a sensação igual a do gerúndio.

Para quem não sabe, o gerúndio é uma entre as três formas nominais do verbo. Explicando em outras palavras, o gerúndio – tanto quanto o infinitivo e o particípio – não possui flexões temporais e modais, o que faz com que permaneça com características tanto verbais quanto nominais (ou seja, de substantivo, adjetivo ou advérbio). Além disso, o gerúndio é aquele que indica uma ação contínua, que estava, está e estará ocorrendo, sempre em andamento e nunca finalizado.

Esse livro possui a mesma essência. Nós não podemos imediatamente classificar essa obra como parte de uma estética literária, pois permanece em um meandro que utiliza – ou não – características específicas, como, por exemplo, a própria noção de temporalidade do realismo mágico, ainda que ignore a magia que ocorre dentro de tramas do gênero, como Cem anos de solidão.

Tanto quanto o encaixe e desencaixe, que permanece com Amuleto e o gerúndio em, respectivamente, estéticas e classificações gramaticais, também é possível encontrar outra semelhança: a ação contínua, uma característica que poderia vir diretamente do realismo mágico, se assim pudéssemos transportá-lo plenamente.

Dentro da estética que critica as ditaduras, outra característica em comum que esse livro abarca, há uma noção de temporalidade cíclica, ou seja, um eterno retorno, o que sempre volta a ocorrer. Contudo, devo admitir que essa não é a sensação que eu tenho ao ler Amuleto.

Em Amuleto, para mim, não me parece que o tempo seja cíclico, porque eu sinto, com a ajuda de Auxílio, a sua claustrofobia no banheiro das mulheres da universidade em 1968. Naquele espaço, embora seja espaço, o tempo não passa, mesmo que já tenha ido. A sensação que tenho é que, mesmo que os minutos e horas tenham passado e tenhamos chegado a 2018, 1968 permanece acontecendo, sem deixar nunca de existir. O tempo, ao invés de cíclico, parece estagnado como um ponto dentro de uma linha que dispara para todos os lados: não é reto, não é circular, só um mero ponto que avança em direções reais e ficcionais.

No decorrer da leitura, não há como saber o que de fato ocorreu, ocorre e o que ocorrerá, pois, a narração em primeira pessoa apresentada se equivale ao fluxo dos nossos pensamentos mais cotidianos. Não pensamos linearmente, nem de maneira circular; Auxilio Lacouture também não. Tanto quanto nós revivemos o passado e imaginamos o futuro, ela faz e, arrisco-me a dizer, é uma das características mais palpáveis e reais da personalidade inserida por Bolaño.

Todos os personagens são verossímeis na obra, não somente por serem verdadeiros e personalidades que viveram realmente em nossa realidade, mas também porque Bolaño – com seu eu histórico e o seu eu ficcional, ao mesmo tempo – traz o que há de mais sensível e humano para dentro de sua obra gerundiana.

Auxílio Lacouture, na verdade, é Alcira Soust Scaffo, uma poetisa e professora uruguaia, que ficou presa na UNAM (Universidad Nacional Autónoma de México) durante a ocupação do exército mexicano em 1968, durante quinze dias inteiros. A única diferença entre as duas é que Auxílio, ao contrário de Alcira, não era professora e nem poetisa, mas alguém que se auto intitulava a mãe de todos os poetas.

Essa intitulação, constante e ferrenha dentro da obra, chamou muito a minha atenção porque as referências culturais da nossa arte são gregas, ainda que a literatura latino-americana tenha tentado escapar de suas garras, continua, de alguma forma, a beber da fonte eurocêntrica.

Por conta disso, foi impossível – para mim – deixar de fazer uma associação muito peculiar com a mitologia grega, suas histórias e personalidades conhecidas por todo mundo: àquelas que inspiram os poetas são as Musas, as nove filhas de Zeus e Mnemósine.

Mnemósine, para aqueles que desconhecem, era filha de Urano e Gaia, considerada a personificação da memória e aquela que preservava a humanidade do esquecimento. Ela também era a mãe das Musas e, consequentemente, a mãe daquelas que inspiram os poetas.

Ao se dizer a mãe de todos os poetas, fazendo referências culturais, histórias e literárias que não devem ser esquecidas pelos latino-americanos, Auxilio – com seu fluxo de pensamento – é a própria deusa da Memória ou a personificação da memória, aquela que nunca esquece e que relembra ao povo do passado que não pode ser apagado, mas que, como os mitos, pode ser revivido quando recitado. E, durante toda a trama, Auxílio recita e revive o seu trauma.

O interessante da leitura da obra de Bolaño é que não me parece uma trama fechada, ou seja, podemos – como tantas outras obras – tirar diversas conclusões diferentes e nunca estarmos plenamente corretos e nem errados. O fato é que, ao vislumbrarmos um fluxo mental, não sabemos que parte daquela vida foi vivida, que parte daquilo foi revivido ou inventado, quiçá sonhado.

Parece-me que, com seu trauma, Auxílio vive em um delírio real ou uma realidade delirante e, nesse meio tempo, só podemos supor o que aquela mulher com um espírito jovem e revolucionário, em um corpo velho de quem já perdeu os dentes ou um novo que ainda está preso naquele banheiro, viveu ou passou.

Há algo nessa trama, no entanto, perdido, que, infelizmente, por mais que eu tentasse, não consegui alcançar, pode ser algo que fuja a minha capacidade intelectual, porém, também pode ser uma referência – como outras – que perdi, pois Amuleto é uma narrativa que referencia claramente outras tramas de Bolaño, por exemplo, Detetives Selvagens e 2666. Na primeira, por exemplo, conhecemos e temos ciência que Arturito Belano é, ninguém menos, que o alter ego do próprio autor.

Pois até mesmo o escritor, que representou tão bem uma personagem feminina, vive no gerúndio e não em outros tempos verbais.

 

REFERÊNCIAS

BOLAÑO, Roberto. Amuleto. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 
<https://es.wikipedia.org/wiki/Alcira_Soust_Scaffo>; consultado em 21/04/2018 às 18:55