RESENHA #29: EM QUE LUGAR ESTÁ CHRISTINA?

 

AUTOR: Mircea Eliade
SINOPSE: O ano é 1935. Ígor, jovem e belo artista plástico, e o professor Nazarie, arqueólogo, são hóspedes do imenso casarão sede de ‘Z.’, latifúndio decadente em Giurgiu, distrito na fronteira romena com a Bulgária. A senhora Moscu, dona da propriedade, vive com as filhas Sanda, uma jovem adulta, e Simina, de nove anos. À medida que os dias – e sobretudo as noites – passam, fenômenos cada vez mais estranhos se sucedem, a começar pelo comportamento da senhora Moscu – acometida de súbitas ausências, como que hipnotizada por alguém – e de Simina, cujo cruel cinismo é incompatível com uma criança. Sanda, por sua vez, parece prisioneira de um terrível segredo que não consegue ou não pode explicar a Ígor, por quem se apaixona. 

Aos poucos, os hóspedes percebem a ascendência de senhorita Christina, irmã da senhora Moscu morta aos vinte anos, durante uma revolta de camponeses que tomou a Romênia em 1907. Seu quarto permanece intocado, e o enigmático retrato da dama domina o aposento, impressionando Ígor. Simina diz conversar com a tia morta e ela mesma começa a aparecer em sonhos para o artista, a quem revela sua paixão. Sonho e realidade vão se mesclando, e Ígor já não sabe distinguir se delira com a presença de Christina em seu quarto, onde ela deixa a inconfundível fragrância de violeta, ou se está se envolvendo com a loucura de uma família doentia. Tudo se encaminha para o embate velado entre Christina, mistura de fantasma e vampiro, e Sanda, que disputam, em condições bastante desiguais, o amor do mesmo homem.

Eu sou um tipo de leitora muito crítica, não somente com a obra, mas comigo mesma. Antes de começar essa resenha, eu quero deixar claro que nem sempre nós, os leitores famintos, temos capacidade de entender uma história, seja parcial ou completamente. Eu, particularmente, não me senti capaz de compreender toda a profundidade abordada por Mircea Eliade em Senhorita Christina.

Ao contrário de muitos leitores que, quando leem uma história que não compreendem, passam a falar mal da obra e do autor, eu sou uma pessoa que para muitíssimo para refletir as minhas leituras, sempre me questionando de quem é a culpa pela experiência não ser a melhor ou a mais agradável. Obviamente, depende muito: há escritores que pecam em estrutura, enredo, personagens; há aqueles, no entanto, como é o caso de Mircea, que se aprofundam tanto em planos narrativos e existenciais de sua trama, inclusive intrínsecos e entrelaçados na estrutura narrativa, que fica muito difícil captar completamente a essência.

Eu me perdi dentro de Senhorita Christina e isso foi muito bom e muito ruim ao mesmo tempo. O fato de eu me perder me lembra de como é boa a sensação de não enxergar a resposta à frente imediatamente e como eu ainda preciso crescer. A parte ruim é que fica muito difícil falar sobre; porém, ainda é prazeroso, porque, caminhando lado a lado com esse texto, eu vou falar das minhas impressões – corretas ou não – sobre o que eu consegui adquirir e experienciar com Christina e os outros personagens.

Comecemos citando que a obra está escalada entre o gótico e o erótico. A trama foi considerada pornográfica por muito tempo, o que trouxe um apagamento e uma opressão muito forte, contribuindo para que essa trama não fosse muito conhecida; embora sua datação (1936) seja próxima a obras famosas do gênero, como é o caso de Drácula (1897) e Carmilla (1872).

Além de beber como uma inspiração de certa forma dessas narrativas, Mircea trouxe uma paixão avassaladora e também uma perigosa relação entre os personagens presentes em diversos planos distintos entre si. Senhorita Christina, na tradução, ficou conhecida como vampira, mas, em verdade, ela é um strigoi.

Essa criatura, o strigoi, faz parte do folclore romeno e é, de certa maneira, considerada uma variação de vampiro para muitos pesquisadores e até mesmo amantes da área. Contudo, para entender bem a criatura que é Christina, acredito eu, traduzir como “vampiro” faz perder e muito a conotação pretendida pelo autor; e limitá-la a um vampiro, em uma concepção moderna como a nossa, também.

O nome provém, originalmente, do grego strix e o seu significado era coruja. Nós conhecemos a coruja como uma criatura sábia, mas, principalmente, a sua sabedoria vem do fato de que ela é capaz de ver a totalidade, ou seja, ela enxerga o consciente, o inconsciente da mesma forma que é capaz de enxergar entre e em todos os planos. Ela vê o que os outros não são capazes, porque vê a escuridão.

A capacidade de ver a escuridão e o que os outros não conseguem é uma capacidade desse animal e é parte muito forte de sua simbologia. Dentro da cultura latina, strix ganha uma nova conotação e também um novo conceito mitológico: a criatura que, nas línguas vermiculares, ficou conhecida como estirge ou estrige.

Figura que já foi associada a rituais de magia negra e maldade, a strix latina era parte do imaginário popular sobre bruxaria. Era um ser voador – em algumas lendas, eram bruxas transformadas – que sugava o sangue ou devorava crianças para sobreviver; após se alimentar, voltava para um sono profundo.

Obviamente, como todo mito, há muitas variações a respeito, entretanto, foi a partir desse imaginário popular que surgiu, na Romênia, o strigoi e, em outras culturas, como a italiana, a francesa, a albanesa e a polaca, respectivamente: strega, no italiano, que significa bruxa; stryge, no francês, a mulher pássaro que suga o sangue de crianças inocentes; shtriga, no albanês, uma bruxa vampírica que suga o sangue de bebês enquanto dormem; strzyga, em polonês, uma mulher amaldiçoada que possui dois corações e dois conjuntos de dentes, consideradas inofensivas, por não quererem fazer mal propositalmente, ainda que pressagiem a morte.

O interessante é que, em romeno, a palavra strigoi também significa “gritar” e, na minha mente, faz bastante sentido considerando o que o folclore romeno apresenta sobre essa criatura. Na Romênia, o strigoi, ainda que possua variações, geralmente é um espírito incapaz de descansar em seu túmulo e, por conta disso, levanta-se de sua sepultura. Claro que há outras variantes, como pessoas vivas com capacidades mágicas.

Eu disse que fazia sentido porque, na minha cabeça, o ato de gritar é um ato desesperado e a própria criatura é um ser vindo de uma turbulência da alma, ou seja, também um ato de desesperado de estar vivo por alguma razão, como num grito pela vida. Logo, para mim, não é estranha a relação dessas duas palavras, ainda que possam não ter nada a ver uma com a outra.

Como estudioso de religiões e com diversos livros teóricos na área, Mircea Eliade tinha absoluto conhecimento de seu folclore e também, muito provavelmente, de toda a origem dele. Saber a origem de Christina, o que ela realmente é, dá ao livro uma profundidade que a etimologia de vampiro e a própria existência dessa criatura não é capaz de dar e o que com toda certeza afeta nossa leitura.

Sabendo disso, podemos observar a obra e pensá-la muito melhor, na minha concepção. Senhorita Christina é uma personagem sedenta por amor, desesperada por uma relação com o jovem Igor, que está apaixonado por Sanda – a sobrinha da criatura sombria que dá título à história. Alguns dos leitores de Senhorita Christina se incomodaram com essa relação amorosa e a ênfase que Eliade dá, em certos momentos, a isso; contudo, isso faz parte do desespero, do grito – ouso dizer – da personagem que foi morta por causa do amor.

O sobrinho de Eliade, Sorin Alexandrescu, divide a obra em carne, morte e diabo, pois existe muito do erótico, muito do plano do efêmero e também do religioso. A todo o momento, evoca-se a religiosidade de tal maneira que Christina se evoca para dentro do plano mortal e, aliado ao sagrado e ao profano, há a performance erótica e o amor derradeiro conectados, em que o desejo da carne se faz por si mesmo, em uma naturalidade e, ao mesmo tempo, desespero sublimes.

Ao falar de planos, como o citado acima, encontramos diversas divisões entre eles. Por exemplo, em dicotomia, há o plano mortal e sobrenatural; o sonho e a realidade; ainda que haja também outros planos, como o narrativo: o real, mítico e simbólico. Todos esses planos são parte essencial para compreender a história e, em todos eles, há Christina (lembra-se da totalidade de enxergar os planos da strix para os gregos?), entretanto, confesso que em muitas cenas, eu não sabia em que plano Eliade trabalhava e esse foi o meu maior problema de compreensão durante a leitura.

Por conta disso, posso dizer que a minha ignorância afetou muito a minha percepção da obra ou, talvez, essa falta de compreensão de planos seja proposital, pois os personagens estão perdidos naquela situação, da mesma forma, o leitor também se perde. Igor não sabe se vive ou sonha com Christina, talvez um deles ou os dois – o leitor, aliado à sua percepção humana, a única aparente na trama, também não sabe.

Talvez tudo se passe no meandro, entre sonho e realidade, contudo, o fato de ignorarmos em que lugar cada fato ocorre, confesso, afeta muito a compreensão e a percepção do que de fato está acontecendo e o leitor fica perdido com situações e reações dos personagens que, aparentemente, parecem inverossímeis, mas definitivamente não são.

Há também oposições muito marcadas e um empoderamento feminino exuberante, pois, diante de mulheres poderosas como Christina e Simina, os homens se transformam em medrosos, covardes e submissos, o que entrevê a polaridade de forças entre o feminino e o masculino, também presente em relações mitológicas e estudos do autor na parte teórica.

Outras oposições são muito marcadas e presentes importantes da narrativa, como: a arte e a ciência, representada por, respectivamente, Igor e Nazarie; o jovem e o velho; a paixão e o terror; o popular e o rural; o amor e o ódio; etc. Sendo essas dicotomias provas irrefutáveis de um pensamento da época que é questionado pelo autor, em um plano tão implícito que podem passar despercebido – ou possa ser uma mera leitura descabida minha.

O fato é que há algo em Senhorita Christina que me fez ficar encantada e, ao mesmo tempo, aturdida. Há também uma confusão enorme e uma sensação de que há tanto que eu não sou capaz de enxergar. Essa obra me dá a mesma sensação que histórias como de Saramago, com o seu Ensaio sobre a Cegueira, me dão: ela é uma fonte inesgotável de conhecimento que se encontra e se perde.

A escrita é bastante truncada e a tradução oferecida pela Tordesilhas me incomodou muito, tanto pelo fato da tradução de strigoi quanto pela forma em que a narrativa se deu no português, ainda que eu não culpe propriamente o tradutor (pois realmente é muito difícil traduzir romeno). Contudo, também acredito que essa estruturação da narrativa seja proposital, pois quanto mais truncado é o texto, mais emaranhados a história passa a possuir e mais a sensação de estar perdida – em um bom sentido, confesso – aumenta.

Essa é, definitivamente, uma obra que eu preciso e quero reler daqui a algum tempo, porque ela é feita em um tempo longe do nosso, tanto literal quanto figurativamente, e em um lugar que eu preciso achar, pois eu não sei onde está Christina.

 

REFERÊNCIAS

ELIADE, Mircea. Senhorita Christina. Tradução de Fernando Klabin. São Paulo: Tordesilhas, 2011.
<https://en.wikipedia.org/wiki/Strigoi> consultado em 12/03/2018 às 02:00.