AUTORa: Ursula K. Le Guin
SINOPSE: Urras é um mundo de abundantes recursos dividido em vários estados-nação. Em meio a extremos de riqueza e pobreza, dois deles estão em guerra para estender sua influência – e seu sistema político – sobre os demais. Anarres, por sua vez, é o planeta recluso e anarquista gêmeo de Urras, cuja visão utópica de seus colonizadores acabou criando uma ilusão de sociedade perfeita. Essa ilusão só é quebrada quando Shevek, um jovem físico brilhante de Anarres, descobre a Teoria da Simultaneidade, uma ideia que pode acabar com o isolamento de seu planeta e, ao mesmo tempo, avivar as guerras do planeta vizinho.
Existe uma anedota sobre Tolstói muito interessante, embora eu não lembre de todos os detalhes e nem de onde a li. Certa vez, ele estava sentado em uma pedra – ou algo assim – pensando na morte. Ao seu lado, tinha um mujique (camponês) trabalhando. Tolstói por mais entusiasta, nobre e rico, ainda assim, era infeliz; enquanto, ao seu lado, o homem com nenhuma escolaridade e uma vida de labuta continuava o seu ofício. Então, o escritor resolveu fazer uma pergunta ao trabalhador a respeito do seu medo em relação à morte. Nisso, o homem lhe respondeu: “E lá eu tenho tempo para isso?”
Essa resposta provavelmente não foi assim, mas ela com certeza reverberou no autor: conde, proprietário e infeliz. Essa diferença entre essas duas classes sociais, bem demarcadas por Marx, mostra que existe uma dicotomia no mundo e sempre há diferentes pontos de vista da realidade a partir daquilo que você experiencia. Ursula Le Guin fez um trabalho estupendo em Os despossuídos ao colocar essa diferença social e ideológica durante todo o percurso do seu livro.
Nessa obra, encontraremos dois opostos: um planeta e sua lua (ou quem sabe o contrário?). Anarris é um mundo anarcocomunista, onde as pessoas não têm posses e vivem como “membros da comunidade”; enquanto Urras se divide em três diferentes ideologias políticas: o capitalismo (A-Io) e o socialismo (Thu), além de um governo ditatorial (Benbili).
Le Guin não utiliza essas ideologias à toa e nem coloca esses países nessa disposição sem motivo. A sua obra foi publicada em 1974, um ano antes do fim do conflito armado no Vietnã. Para quem não sabe, esse é o mesmo período histórico da Guerra Fria e de um conflito intenso: a Guerra do Vietnã, país no qual os Estados Unidos interferiu no controle político, apoiando um golpe ditatorial na parte Sul (após a divisão Norte-Sul em que, respetivamente, um era socialista e outro capitalista). Esse conflito gerou muitos atritos entre o governo norte-americano e sua população, pois a maior parte era contra o envio de jovens soldados.
Assim, Ursula utiliza esse plano de fundo real dentro da sua ficção-científica para criticar todos os sistemas de governo, mesmo o anarcocomunista, pois, pouco a pouco, o humano tende a controlar os meios de produção, no caso de Anarris, é possível observar de perto o controle exercido no plano acadêmico por parte do professor de Shevek; além de existir uma supressão social, por parte da ideologia de que a “maioria determina”.
Diferente de outros autores de sua época que extrapolam a ficção-científica na questão tecnológica, Ursula se apropria das ciências sociais para discutir as diferentes formações ideológicas de seu próprio período histórico. Não obstante, também apresenta o quesito ético-científico muito marcado através da figura do protagonista, denotando que “conhecimento significa poder”. Também pontua críticas intensas a exploração do indivíduo, da perda da individualidade, do abuso do ecossistema, do isolamento ideológico, do conceito da guerra, da censura intensa, da destruição e, em diferentes momentos, do sexismo e da visão da mulher como posse.
Ela, ao contrapor Urras e Anarris como contrastantes, também faz uma associação sacra-profana através da noção de Inferno e Paraíso. Seus personagens possuem diferentes perspectivas quanto a essa questão e é muito interessante observar a diferença ideológica, a conversão do pensamento e a construção inerente que Ursula faz de cada um deles através de suas experiências particulares e ideologias nativas.
Não menos importante é a percepção cultural como um todo. Da mesma forma que ocorre em 1984, obra de George Orwell, com a supressão vocabular da new speak, Le Guin utiliza a língua para demonstrar a realidade desses indivíduos: não há pronomes de posse, xingamentos ou sexualização feminina. Há, também, o termo “egoizar”, que provém de “ego” (eu, em latim). O indivíduo não pode ser entendido como indivíduo, embora o seja mesmo assim.
Outro aspecto interessante do texto é a teoria de Shevek sobre a “simultaneidade”. O texto é simultâneo, como demonstra a teoria do protagonista. Ursula consegue misturar a ideia do personagem principal com a própria construção do texto, intercalando os acontecimentos do passado e do presente (pois são parte do todo). Todas as coisas acontecem ao mesmo tempo e tudo faz parte disso: a construção de Shevek é inerente ao Shevek em Urras e ao mesmo tempo ao Shevek em Anarres. Ursula Le Guin é simplesmente brilhante. Inclusive, vale lembrar que o tempo, nessa construção ideológica, é como se fosse cíclico e é muito estimulante ver que Odo tem um nome tão circular quanto sua teoria de comunidade e o próprio tempo. Até nisso a escritora acerta.
Durante diferentes momentos da narrativa, observamos como essas comunidades são distintas entre si. No entanto, há algo em comum: seres humanos. O anarquismo de Anarris, pouco a pouco, vai se deteriorando; ao mesmo tempo, há pessoas em Urras que se sentem insatisfeitas com a política concebida pelos ricos. Nenhum lugar é perfeito, mas a grama do vizinho sempre é mais verde (até se olhar de perto – ou da lente que você utiliza, é claro).
A edição lida e comentada é incrível. Capa dura e com uma arte interessantíssima, conta com uma diagramação confortável e mapas dos dois planetas para que o leitor possa se situar. A tradução de Alexandria é ótima e há poucos erros. Assim, não fique divagando como Tolstói, aproveite para embarcar nessa aventura.
REFERÊNCIA
LE GUIN, Ursula. Despossuídos. Tradução de Susana L. de Alexandria. 2ª ed. São Paulo: Aleph, 2019.
Viciada em livros, fanática por animes e escandalosa assistindo filmes.