AUTOR: Sheridan Le Fanu
SINOPSE: E se aquela sombra no canto do quarto fosse mais que uma sombra? E se ela se afeiçoasse a você, passando a desejar não apenas o seu sangue, mas algo… além? Em um castelo isolado nas profundezas da Estíria, Laura leva uma vida solitária, tendo apenas seu pai doente como companhia. Até que, numa noite de luar, uma carruagem aparece carregando uma convidada inesperada – a bela Carmilla.
Conhecidos como criaturas sensuais, os vampiros permeiam a nossa imaginação desde muito tempo. Inclusive, vale ressaltar que o vampirismo se apresenta de formas distintas e não existe um padrão certo para ele. No entanto, com a vinda de obras como Carmilla e Drácula, inspirado no título de Le Fanu, houve certo encaminhamento para a designação dessas criaturas.
Contudo, é sempre importante destacar que as mulheres sensuais, desde Lilith, na sociedade cristã, já traziam esse gosto sanguinário, seja se alimentando de crianças, seja tomando sangue e a vitalidade dos homens. No entanto, antes de adentrar ao contemporâneo, acredito que seja interessante retomar o período da Antiguidade, até porque Carmilla, no decorrer da história, se transforma em um gato.
Durante o período inicial do século XIX, a Europa, principalmente a França e a Inglaterra, passaram por uma espécie de obsessão com o Egito, até porque a expansão napoleônica se deu nessa época. Aliás, vale destacar que o escritor Théophile Gautier, autor de A Morta Apaixonada, passou por uma fase inspirada pela egiptomania. Não é estranho pensar que, anos depois, estudando o ocultismo, Sheridan Le Fanu não pudesse utilizar as mesmas diretrizes. Assim, podemos retomar o mito de Sekhmet e Bastet, em que Rá precisou enganar a deusa leoa, dizendo que iria lhe dar sangue quando, na verdade, ofereceu vinho/cerveja. Ao embebedá-la, Rá acalmou a divindade e ela passou a ter a percepção mais apaziguada de Bastet, a divindade metade humana e gata, como Carmilla, também aplacada pelo patriarcado.
Ao tratar da mitologia egípcia, podemos destacar o antropozoomorfismo: metade humano, metade animal. Esse lado animalesco e sensual permeia a literatura vampírica e a sua percepção mítica, pois há diversas criaturas no mundo inteiro que trazem essas características, como a lâmia (mitologia grega, metade cobra); asanbosan (mitologia africana), baital (mitologia indiana, metade morcego), strigoi (folclore romeno) etc. Além das divindades femininas e símbolos religiosos, como Kali (deusa hindu), Lilith (primeira mulher de Adão), que tratam a figura feminina como perversa e subversiva, respectivamente.
Dessa maneira, não é estranho pensar que Sheridan Le Fanu estudou muito sobre essas diferentes linhagens de vampiro na hora de compor Carmilla, trazendo referências muito claras a Christabel, poema de 1816 de Samuel Coleridge, cuja narrativa possui semelhanças, mas, em questões críticas e ousadia, afasta-se. Também pode ter pego referências a deusa tripartida, pois a primeira aparição de Carmilla se dá quando ela surge junto da mãe e da empregada e, não menos importante, seu nome compõe três anagramas: Millarca, Micarlla e Carmilla.
Ainda pensando na figura do vampiro, é importante lembrar que a fonte desse vampirismo moderno se centra no Leste-europeu, com a presença das strigoi sendo mais marcantes. Até porque, durante o século XIX, tiveram muitas epidemias, as quais reforçavam o medo do sobrenatural por parte da população, principalmente, em relação à tuberculose. Muitos casos de mortes consecutivas e sem explicação – pois a maioria das pessoas não tinha conhecimento científico suficiente para entender – davam a essas pessoas uma necessidade de esclarecimento e, tal como a invenção dos mitos, do folclore e das lendas, elas recorreram ao sobrenatural. A sua resposta, inclusive, foram os túmulos dos suicidas, pois não eram enterrados no solo sagrado, o mesmo é narrado por Laura ao tratar sobre o passado de Carmilla, mostrando mais uma vez os conhecimentos de Le Fanu até em relação à tradição e os estudos de Colmet sobre espíritos malignos e vampiros, lançado em 1751.
É claro que Carmilla também pode ter tido uma inspiração real, pois, na historiografia, podemos desbravar a história da condessa sangrenta, Elizabeth Báthory de Esed, a húngara que teria matado em média 600 mulheres para se banhar no sangue delas. Além de ter possivelmente cometido esses assassinatos, ela era conhecida por ser bissexual. Da mesma maneira, também houve, durante o período do século XVI, o conhecimento por parte dos espanhóis dos morcegos americanos, os quais tomavam sangue de outros animais (conhecidos como hematófagos, mais uma associação provada pelo medo do desconhecido).
Não obstante a essa tradição extensa, o vampiro ganha novos traçados na literatura através de Polidori e outros grandes nomes. Esses personagens fogem do estereótipo social e são sexualmente livres, como Carmilla. Eles são periféricos, pertencem à margem da sociedade ou estão associados, como no caso da condessa Micarlla, aos nobres. Assim, as regras impostas a eles não importam. Vale lembrar que a forma de tratamento dada aos súditos por parte dos nobres era terrível, como ocorreu com a condessa sangrenta e como é demonstrado por Carmilla durante a narrativa. Sendo assim, não é estranho que a população associe essas maldades às classes sociais (ou a literatura o faça, afinal, eles sugavam a alma das pessoas enquanto as matavam de tanto trabalhar).
O texto de Le Fanu foi publicado em folhetim, por mais que seja curto, diferente de outras obras, como, por exemplo, Os três mosqueteiros etc. Seu texto é enxuto e trata sobre um relato (uma carta) a respeito de um acontecimento sobrenatural: Laura fala com uma correspondente feminina e, com ela, compartilha sua experiência com Carmilla. Ao pensar nisso, devemos destacar de forma muito importante que as transgressões de Carmilla afetaram a experiência psíquica de Laura, por mais que ela ainda se porte como a bela e recatada do lar. Essa experiência é compartilhada com outra mulher, fora do eixo rural de Laura, adentrando ao espaço urbano.
Não menos importante, como fundador de histórias fantasmagóricas e com um estilo gótico na sua estética literária, Le Fanu dá muito destaque a objetos, à casa, aos cômodos e, principalmente, ao espaço da narrativa: eles estão morando na Áustria. Laura e seu pai são estrangeiros e estão iluminados, ou seja, acreditam no iluminismo e no cientificismo, principalmente, seu pai. Assim, o vampiro, essa figura que provém do sobrenatural, consegue conduzi-los a perdição pela suspenção da crença. Vale lembrar que a estética gótica foi um contraponto perfeito a renascentista, não só pelo jogo de sombras e luz, mas também pelas “trevas” do conhecimento científico em busca da sobrenaturalidade.
Essa figura paterna, por vezes, perde espaço na narrativa, embora o patriarcado triunfe simbolicamente no final através da figura do homem científico e do militar. Le Fanu, diferente de Samuel Coleridge, consegue nos trazer muitas críticas quanto ao tratamento dado ao feminino. A mulher é submetida aos comandos masculinos mesmo no seio do lar, ela é objetificada e não pode ter desejos e liberdade próprios. Carmilla, subversiva, mostra essa possibilidade a Laura, seu oposto na narrativa, uma bela e recada do lar.
As duas compartilham, dentro dessa oposição, uma relação homoerótica, pois o vampiro não se submete aos padrões dos mortais. Essa representação se subdivide em desejo sexual, adentrando a esfera das pulsões freudianas, inclusive, Laura se vê entre a repulsa e o desejo; e a sensual, imposta através do poder de persuasão de Carmilla em relação aos seres humanos e suas presas, principalmente mulheres de sua idade. Embora Le Fanu não conhecesse Freud, as pulsões do amor e da morte podem explicar o que existe entre Laura e Carmilla de forma sublime.
Essa é uma história intensa e curta, capaz de gerar no leitor muitas emoções e reflexões. A edição lida e cedida em parceria pela editora Wish conta com a tradução de Carlos Primatti, bem como um texto de apoio. Esse texto de apoio foca pouco no vampirismo e em Carmilla, dando maior ênfase as adaptações da obra de Le Fanu. A edição também conta com outro texto do escritor, O Juiz Harbottle, cuja crítica está relacionada ao abuso do poder por parte dos magistrados e, se não há justiça na terra, definitivamente há no inferno.
REFERÊNCIAS
GIESTA, Eugénio José Castro. Bastet e Sekhmet: aspectos de natureza dual. Dissertação de Mestrado em História Antiga. Faculdade de Letras. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2019.
LE FANU, Joseph Sheridan. Carmilla. Tradução e prefácio de Carlos Primati. Apontamentos de Renata Philippov. Ilustração de Caroline Murta. São Paulo: Wish & Clepsidra, 2022.
Viciada em livros, fanática por animes e escandalosa assistindo filmes.