RESENHA #17: O CLICHÊ TRAIÇOEIRO

 

AUTORA: Erin Beaty
SINOPSE: Com sua língua afiada e seu temperamento rebelde, Sage Fowler está longe de ser considerada uma dama – e não dá a mínima para isso. Depois de ser julgada inapta para o casamento, Sage acaba se tornando aprendiz de casamenteira e logo recebe uma tarefa importante: acompanhar a comitiva de jovens damas da nobreza a caminho do Concordium, um evento na capital do reino, onde uniões entre grandes famílias são firmadas. Para formar bons pares, Sage anota em um livro tudo o que consegue descobrir sobre as garotas e seus pretendentes – inclusive os oficiais de alta patente encarregados de proteger o grupo durante essa longa jornada. Conforme a escolta militar percebe uma conspiração se formando, Sage é recrutada por um belo soldado para conseguir informações. Quanto mais descobre em sua espionagem, mais ela se envolve numa teia de disfarces, intrigas e identidades secretas. E, com o destino do reino em jogo, a última coisa que esperava era viver um romance de tirar o fôlego.

Há nesse livro curvas que podem ora ser descritas como suaves, ora ser descritas como turbulentas. Essas curvas, no entanto, fazem com que o livro seja muito diferente do esperado por qualquer leitor que o julgue pela capa.

Sempre digo e sempre repetirei: nós entramos em um livro, e a forma como o vemos depende muito de nossas expectativas, desde o início até o final da leitura. A mesma ideia vem – como eu já mencionei – de julgar o livro pela capa. Você já passou por isso? Pois é, confesso que fiz exatamente isso com essa história.

A capa já induz um romance à moda Jane Austen, mas induz que seja somente um romance de época e nada mais. Obviamente, os romances de Austen fogem do romance básico e se aventuram em críticas sociais da época, contudo, ainda é enfatizado – a todo o momento – o romance entre os personagens e a mudança que ocorre com cada um deles a partir dos encontros. Essa construção romântica até ocorre em O Beijo Traiçoeiro, mas foge – e muito – do romance como tema central.

As minhas expectativas foram completamente quebradas positivamente, nesse aspecto. De acordo com meu gosto pessoal, confesso que me interesso por narrativas que me apresentem mais sobre o universo, o contexto, sem focarem somente em um romance simples, impressão essa que alguns livros da categoria Young Adult (literalmente: jovem adulto), ou seja, livros focados em um público mais próximo a idade adulta, vem exibindo.

Dessa forma, algumas barreiras se extinguiram e o livro se tornou todo um universo a ser mais explorado e mais ansiado. Entretanto, esse novo lugar – chamado Demora – possui alguns problemas não somente dentro da narrativa, mas em sua descrição, mais especificamente. É possível perceber que se passa em um novo lugar, um novo universo construído pela a autora, porém, faltou tato e sutileza na hora de descrever os cenários, tanto físicos quanto políticos e econômicos.

A ideia do livro é trabalhar todos os aspectos que envolvam o sistema de governo de Demora: tanto os conflitos políticos de fronteiras, a preparação e as táticas do exército, como também a influência que as casamenteiras – ou melhor, os casamentos arranjados – exercem sobre a construção e o equilíbrio desse mundo inteiramente novo para nós. Contudo, embora seja uma história brilhante nesse sentido – que faz você querer realmente bater palmas para a autora, várias vezes -, você precisa se esforçar um pouco para ultrapassar a barreira entre a escrita da autora, que não é tão boa quanto a narrativa, e a velocidade das informações que são dadas.

Entretanto, não é uma tarefa impossível, mesmo no início, se você prestar bastante atenção nas informações que estão sendo dadas. Mas, se você não conseguir, não se preocupe. Aos poucos, no decorrer da apresentação da história, as ideias primárias se tornam muito mais claras para o leitor do que tinham sido no início, visto que o fio narrativo vai ganhando forma até se tornar uma teia – um tanto complexa – de informações.

Erin Beaty estreia no mercado editorial com esse primeiro volume de sua trilogia e se torna bem nítido que o único problema da autora é a falta de sutileza – característica de muitos iniciantes que começam a investir em seu trabalho cedo demais – que a faz cometer muitos deslizes infelizes, que embora sejam respondidos até o final (ao menos, a maioria deles), já deixam uma marca, uma impressão no leitor – principalmente nos leitores que já acompanharam os comentários estrangeiros a respeito dessa obra.

Contudo, devo afirmar alguns parênteses a respeito de algumas colocações sobre a narrativa e sobre a obra, que me parecem que não foram pensadas anteriormente por alguns desses leitores.

Como disse anteriormente, a autora não foi muito perspicaz em suas descrições de cenário, o mesmo serve para a descrição da coloração dos personagens que fica um tanto confusa, principalmente no início, lugar da narrativa em que você constrói em sua mente como o personagem aparenta, e faz com que você se questione inúmeras vezes como ele é fisicamente.

Entretanto, essa dúvida me foi sanada no decorrer da história quando ela apresenta palavras como oriental e negro. Ainda que eu acredite que essa definição não é ideal e que ela poderia explorar um pouco mais já no início, a escrita de Erin é muito simplista, o que torna – essa falta de detalhamento – parte também do conteúdo da narrativa e parte do plot twist, ou seja, reviravolta do enredo.

Explico. Existe um mistério e uma traição dentro do romance – que não posso mencionar como e nem suas motivações – elaborados pela autora, acredito eu que, caso os personagens fossem descritos melhor, eu não teria nenhuma dúvida do que estava acontecendo. Logo, parte dessa descrição escassa me parece um tanto proposital, visto que, para os mais atentos, parece bem óbvio com quem ela ficará desde o início, porém, durante a história, tudo se modifica justamente porque não entendemos bem como tudo se parece.

Parece-me, dessa forma, ingênuo acreditar que a autora quis, de alguma forma, excluir alguma descrição mais aprofundada quando ela – finalmente – faz isso no final da narrativa e nos explica, em parte, a diferença, mesmo que sem muitos detalhes, algo próprio de sua escrita simplista.

O segundo aspecto que causou revolta e trouxe alguns apelos sobre sororidade foi a respeito de como as personagens femininas são apresentadas em relação à protagonista, que parece muito mais empoderada e a frente de seu tempo. Entretanto, esse aspecto também é explicável dentro da narrativa. O que me pareceu que ninguém compreendeu foi que a narrativa, embora em terceira pessoa, passava-se na perspectiva dos personagens.

Alguns autores utilizam o recurso da narrativa em terceira pessoa para serem capazes de se locomover dentro do universo que estão elaborando sem se prender a uma perspectiva. Logo, o que a autora fez foi exatamente esse joguete de perspectivas – a todo momento.

Sage é uma personagem a frente de seu tempo em algumas de suas ideias, porque é uma leitora ávida e tem o desejo constante pelo aprendizado. Contudo, desde o início do livro, a ideia de que um livro pode ser capaz de ensinar alguém a viver é refutada pela casamenteira, Srta. Rodelle:

 

A sabedoria não vem só dos livros. Na verdade, quase não vem deles.

 

Sage é, embora inteligentíssima, muito preconceituosa. A todo momento, as suas falas e o seu jeito de agir repelem todas as demais candidatas do Concordium, não porque elas sejam “nocivas ou venenosas” como uma das candidatas, Jacqueline, mas porque Sage não consegue conviver com as meninas por ter preconceito em relação a cada uma delas.

Essa ideia pode ser vista a partir de sua interação inicial com Lady Clare, que teve que se esforçar muito para conseguir ter alguma relação com Sage e, em seguida, a protagonista percebe que estava enganada a respeito dela. Como o leitor não pode pensar, dessa forma, que, se ela se enganou com srta. Rodelle e a profissão de casamenteira e com a própria Lady Clare tão doce, ela também não pode estar enganada a respeito de cada uma das meninas que foram enviadas para casar?

O mesmo ocorre com os oficiais, que são influenciados pelo pensamento de toda uma sociedade que busca denegrir a figura feminina e rotulá-la como uma propriedade meiga, gentil e que serve para o lar (algo citado dentro da narrativa mais de uma vez).

Da mesma forma que Sage foge desse estereótipo, ela julga esse estereótipo – algo que muitas feministas fazem na contemporaneidade, sem parecerem compreender que o feminismo é sinônimo de liberdade feminina para escolher o que desejam para si. A sororidade, em certos momentos, no nosso cotidiano, é afetada quando observamos uma pessoa ao nosso lado que, vendo as opressões e as sentindo na pele, discorda de nossas opiniões e seguem uma opinião mais tradicional.

Em nenhum momento, parece-me que Erin Beaty reduz essas personagens femininas, mas mostra que a protagonista possui falhas terríveis de preconceito, falta de conhecimento de mundo e até orgulho – como ocorre em relação ao seu pré-julgamento a respeito de Quinn e como ocorre com as demais personagens femininas que não foram exploradas, inclusive, eu poderia dizer, com Jacqueline e até a srta. Rodelle e o ofício de casamenteira.

Acredito que é um engano acreditar que faltou sororidade nesse livro quando, ao que me parece, é uma crítica também ao preconceito de algumas mulheres empoderadas de nosso tempo que, ao tentar abrir os olhos para os problemas de nossa sociedade, são preconceituosas com aquelas que não conseguem ver primeiramente, sem levar em conta as suas histórias de vida e as suas criações para que pensem dessa forma.

Sage aprendeu, durante o decorrer dessa narrativa, principalmente, que não se deve julgar levianamente o serviço de uma casamenteira, o serviço de uma mulher – que outrora lhe parecia simples e mísero, aos poucos, tornou-se muito mais diante de seus olhos e bem em sua frente – verdadeiramente empoderada e que, de uma forma ou de outra, as casamenteiras comandam a sociedade que vivem por debaixo dos vestidos de noiva. Contudo, como ainda faltam dois livros, parece-me que a protagonista ainda tem muito que aprender e os leitores podem aprender o que é sororidade com ela.

O ponto mais alto da narrativa, além do plot twist muito bem elaborado, é o jogo de espionagem que dá muito mais empoderamento à protagonista – ao meu ver – do que suas ideias sempre brilhantes. Muitos personagens deram ideias – e tinham ideias, até do lado inimigo – interessantes, contudo, as ideias perspicazes de Sage parecem bastante com as ideias mirabolantes da Mulan, enquanto personagem da Disney, o que, acredito eu, deu o pontapé inicial para Erin Beaty elaborar essa história.

O livro O Beijo Traiçoeiro, como diz seu nome, é um clichê tão traiçoeiro quanto. As suas expectativas caem a cada página, como as defesas do inimigo. 

 

REFERÊNCIAS

BEAUTY, Erin. O Beijo Traiçoeiro. Tradução de Guilherme Miranda. 1ª edição. São Paulo: Seguinte, 2017.