RESENHA #168: UMA MADEIRA FALANTE

AUTOR: Carlo Collodi
SINOPSE: Certa vez, um simples pedaço de pau teve a ideia de se transformar em uma criança de verdade. Muita coisa precisaria acontecer, como por exemplo um carinhoso e solitário velhinho marceneiro esculpir um boneco daquela madeira ou uma fada de cabelos azuis simpatizar e o salvar repetidas vezes. Mesmo assim, o que sabe um pedaço de pau sobre a vida, responsabilidade e altruísmo? Nada, é claro. Mas, como a vida é mágica por si só, com ou sem fadas e situações fantásticas, ela mesma talvez ensine ao Pinocchio que para ser uma criança de verdade basta amar alguém.

Na época em que fomos crianças – ou você ainda pode ser uma criança –, ouvimos, quase como um dito popular, que nosso nariz vai crescer se mentirmos, não é verdade? Essa ideia surgiu através de um personagem bastante icônico da literatura infantil italiana: Pinocchio.

A maioria das pessoas escuta, pela primeira vez, sobre essa marionete ao assistir ao filme homônimo de 1940, produzido pela Disney Studios. No entanto, o título cinematográfico é baseado em um livro do período da unificação italiana: As aventuras de Pinocchio.

Muito embora, a princípio, esse não tenha sido seu nome, a história somente foi ao cânone após ter seus trinta e seis capítulos finalizados, levando Collodi – outrora um renomado jornalista – a um incrível escritor de obras infantis. Contudo, por mais que seja um título infantil, não se engane, porque ele trata de diversos temas.

Em primeiro lugar, o cenário elaborado por Collodi é triste e extremamente pobre. Pinocchio, o nome, advém, como o narrador nos conta, de uma família que o mais rico deles pedia esmola. Da mesma maneira, seu criador e pai teve de abdicar de seu único casaco e sua única refeição em prol de seu filho logo no princípio do livro.

Através dessa e outras passagens, Collodi nos apresenta o que ocorreu com a Itália no princípio de sua unificação. Ao considerar isso, deve-se destacar que o escritor era um fervoroso apoiador, lutando e se abdicando em prol da causa, porém sentiu-se desgostoso e incomodado com tudo que se passava. Assim, As Aventuras de Pinocchio se passa no Reino da Itália, em que a população passava fome, frio e era pobre.

Contudo, ainda que pobres, havia a possibilidade de ascensão social através da escolarização. Dessa maneira, em diversas passagens, vê-se destacado a importância do estudo (a taxa de alfabetização, nessa época na Itália, era bem baixa), não por causa da criança em si, mas pela possibilidade de sustentar e dar uma vida melhor aos pais no futuro.

A partir disso, podemos perceber que As aventuras de Pinocchio é um romance pedagógico, ou seja, ele tem o intuito de educar seus leitores, através da moral considerada positiva por seu autor, mesmo que seu método, por vezes, seja um pouco violento e constrangedor (como a metáfora do nariz crescendo). Além disso, também é uma fábula, trazendo consigo um realismo mágico, em que coisas maravilhosas ocorrem de maneira natural para todos os personagens e animais são personificados, ganhando atitudes a partir do simbolismo que possuem. Para exemplificar, temos a Raposa, cujo papel na narrativa é representar os ladrões, já que, como o Dicionário de Símbolos comenta, simboliza a “deslealdade, traição”.

Não somente a Raposa, como símbolo, representará os trapaceiros. Collodi não se mantém somente na metáfora e simbologia, mas trata critica e explicitamente o sistema judiciário e a político da época através de situações passadas pelo boneco de madeira, em que o Estado tanto privilegia aqueles que estão fora da lei moral quanto estes são partes mandantes do próprio sistema.

Por fim, como aspecto primordial, ao meu ver, Collodi trava um embate entre o inatismo e o empirismo ao construir seu boneco de maneira e, querendo ou não, acaba discutindo a psiquê infantil. Em alguns momentos, podemos pensar que Pinocchio nasceu mau; porém, logo em seguida, percebemos que o meio social o corrompe e ele é simplesmente ingênuo demais para perceber.

Essa ingenuidade, a famosa “falta de noção”, tem explicação em Freud, justamente porque Collodi cria um personagem com o egocentrismo infantil. Essa percepção de realidade adulterada faz parte da criança que não viveu experiências empáticas o suficiente. Pouco a pouco, percebemos que Pinocchio vai notando as pessoas à sua volta, mas, ao mesmo tempo, vai se corrompendo por elas.

Assim, mostrando a corrupção proveniente da sociedade italiana no seu princípio, Collodi mostra, por gerações, o que as crianças devem ou não fazer para deixarem de ser tolos e influenciáveis bonecos de madeira e se tornarem meninos bons. Tudo isso através de uma escrita simples e própria para o público infantil, muito embora diversos acontecimentos – para as crianças de hoje – não sejam recomendados, pois contém violência explícita.

A tradução de Adriana Zoudine é muito boa, melhor que algumas traduções que tentam infantilizar em demasia o texto e acabam tornando-o menos poderoso do que é. A edição apresentada pelo Instituto Mojo também é excelente, com pintura trilateral, capa dura, diagramação de qualidade e diversas ilustrações incríveis de André Ducci.

REFERÊNCIA

COLLODI, Carlo. As aventuras de Pinocchio. Tradução de Adriana Zoudine; ilustrações de André Ducci. 1ª ed. São Paulo: Mojo.org, 2020.