RESENHA #151: AMAR PARA FLORESCER

AUTORA: Frances Hodgson Burnett
SINOPSE: Ao perder os pais numa epidemia de cólera na Índia, onde nasceu e foi criada, a pequena e mimada Mary Lennox é enviada para viver na lúgubre mansão de seu tio, no coração da Inglaterra rural. Deprimido pela morte da esposa, o tio está sempre viajando, enquanto seu filho Colin, primo de Mary, passa a vida na cama como inválido. Solitária, Mary tenta se divertir vasculhando a propriedade, até que descobre um segredo incrível: o deslumbrante jardim de sua falecida tia, trancado e abandonado.A descoberta do jardim faz com que Mary conheça Dickon, menino que conversa com os animais e as plantas, e se aproxime do primo, que volta a sair da casa numa cadeira de rodas improvisada. Assim, a amizade das três crianças e o encantamento causado pelo jardim começam a transformar a vida de todos na casa.

Toda criança é única e especial. Dizer isso pode parecer redundante ou estranho, mas também é um ótimo ponto de partida para recordar que a criança é especial porque, antes, ela era única no mundo, dentro de sua mãe. O vínculo materno dá à criança a perspectiva de amor e de família, bem como contribui para a perspectiva de singularidade, especialidade e unicidade.

Assim, toda criança sonha com um espaço somente seu, capaz de refletir sua singularidade anterior. Um espaço de segredo e também que contribua com aquilo que ela considera tão único e especial quanto sua própria existência. Assim, rememorando a pressuposição freudiana de infância, em que a criança é autocentrada, temos como protagonista da história a pequena Mary, uma menina para a qual falta não só uma estrutura familiar, mas também a própria ideia do que significa viver.

Contando com uma protagonista com a infância completamente desestruturada, Burnett nos apresenta O jardim secreto, uma narrativa que trata sobre a criança enquanto trabalha diversos aspectos importantes para essa idade: a família, o amor, a religião/magia e, principalmente, a saúde – tanto do ponto de vista físico quanto mental. Essa é uma história que serve tanto para os filhos quanto para os pais, justamente porque trabalha todas as camadas de uma infância saudável e feliz.

Dentre os pontos mais chamativos, encontramos uma estrutura paralela entre saúde mental e física, bem como entre o ambiente do jardim e a própria constituição das crianças, ampliando o paralelismo e o tornando uma metáfora muito popular e também bem construída. Enquanto as famílias são desestruturadas e falta amor para Mary e Colin, o jardim se apresenta como um espaço semimorto, em que o que brotar, há o que florescer, mas que não teve cuidados para que isso acontecesse de maneira adequada.

Dessa maneira, Burnett nos traz sua perspectiva de uma infância saudável a partir do próprio jardim, em que as crianças decidem que a liberdade do nascer das árvores e das flores é tão importante quanto amar, cuidar e podar. Com isso, a autora não fala só do espaço físico, trata também do espaço da psique das crianças envolvidas. Tal espaço mental é de suma importância para a narrativa, justamente porque a escritora era a frente do seu tempo e foi capaz de considerar que a nossa mente também influencia no nosso corpo

Mais um ponto positivo para a obra é a diferença entre Dickon, que vem de uma família grande e pobre, mas estruturada pela presença ativa de sua mãe, e as outras duas crianças, Mary e Colin, cujos pais não estiveram presentes em suas vidas. Assim, por mais que não atinja as crianças em si, e sim os pais leitores, há uma crítica quanto às classes sociais e a estrutura familiar. Enquanto um teve a mãe, os outros tiveram os empregados, não um laço parental legítimo ou que incluísse afeto de fato, porém uma obrigatoriedade servil em que não há respeito e equivalência. Essa é a principal diferença entre o menino confiável e santificado e as crianças mimadas e egoístas, as quais são assim porque não foram podadas e regadas por amor.

A partir disso, Burnett trabalha a noção de beleza. A beleza dos personagens surge pouco a pouco, não só com a melhora da saúde de cada um deles, mas sim porque eles se tornam gentis, educados, esperançosos e felizes. O que é belo, em uma criança, não é nada além da sua felicidade e seu sorriso, por isso, constantemente vemos menções a isso na narrativa. A magia é outro fator extremamente importante, pois a fé é uma ferramenta mental poderosa que faz com que as crianças acreditem em si mesmas e num mundo melhor.

A escritora também aborda o cuidado com a natureza, através de Dickon, e o sotaque local, mostrando as diferenças sociais e trazendo certa comicidade a trama. Tal sotaque foi muito bem traduzido por Negrello e Schwartz, que se preocuparam com os detalhes da sintaxe e, ao mesmo tempo, da clareza do texto.

Ao se aproximarem da natureza, as crianças também se aproximam dos cidadãos locais em seu modo de agir e de falar, justamente pelo fato de que, nesse espaço natural, não se tem classe social, e sim uns aos outros enquanto crescem, desenvolvem-se e florescem. Cuidar de uma criança é como cuidar de um jardim e, para que seja belo, amor não pode faltar.

A edição de bolso da Zahar conta com menos notas de rodapé do que as versões comentadas, porém, o texto introdutório já dá um panorama geral sobre a obra e também a vida e as ideologias de Burnett. Tal apresentação ajuda-nos a entender um pouco sobre a proposta e também sobre alguns aspectos possivelmente biográficos da narrativa. A capa conta com o design padrão da linha clássicos.

REFERÊNCIA

BURNETT, Frances Hodgson. O Jardim Secreto. Tradução de Liliana Negrello, Christian Schwartz; apresentação de Rodrigo Lacerda. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.