RESENHA #132: QUEIMANDO PLANOS

AUTOR: Genevieve Cogman
SINOPSE: A espiã bibliotecária Irene tem padrões profissionais a manter. Padrões que definitivamente não incluem fugas precipitadas de um prédio em chamas. Mas, quando a porta de entrada para seu centro de operações se recusa a abrir, é preciso improvisar. Depois de fugir de uma França Revolucionária montada em um dragão, Irene descobre que não é a única enfrentando sérios problemas: em vários mundos, o mau funcionamento dos portais que levam à Biblioteca criou um verdadeiro caos.
Encarregados de uma missão que os levará ao Palácio de Inverno de São Petersburgo, Irene e Kai devem recuperar um livro que os ajudará a restaurar a ordem. Porém seu plano é posto à prova quando o poderoso Alberich reaparece disposto a destruir tudo o que é mais precioso para Irene, com uma proposta: “junte-se a mim ou morra”. Mas o maior perigo pode estar espreitando em algum lugar próximo – alguém que Irene jamais pensaria que pudesse traí-la. Com tanta coisa em jogo, ela precisará de todos os recursos à sua disposição para manter-se viva. E, claro, salvar a Biblioteca da aniquilação absoluta.

 

Nos momentos mais sombrios, em que as soluções necessitam de precisão, encontramos obviedades inerentes, as quais, por vezes, passam-nos despercebidas pela aflição da situação. Assim, cometemos deslizes e erramos julgamentos. Contudo, as revoluções surgem a partir desses pontos na história e as suas mudanças podem ser boas ou ruins – dependendo do ponto de vista.

Numa pegada ainda política, embora um pouco mais pessoal, voltamos ao universo incrível de A Biblioteca Invisível. Esse volume, antes de tudo, devo dizer que não é melhor que o segundo, A Cidade das Máscaras, mas ainda ganha do primeiro – que já é ótimo – em capacidade técnica e desenvolvimento.

Voltamos a esse universo que – como pode ser lido nas outras resenhas da série – me fascinou ao ponto de eu desejar estar em um lugar mágico como esse. O interessante é que nada é estanque, tudo se transforma no decorrer da narrativa de Cogman, inclusive, o cenário.

Quando nos habituamos a um cenário londrino semelhante ao do personagem de Conan Doyle, mas com mágica e zepelins; somos em seguida transportados para uma era tecnológica ou uma era em que o Império Russo dominou absolutamente tudo. Definitivamente, essa é uma das coisas que mais gosto na história em questão: a maleabilidade do universo.

Contudo, há mais ideias encantadoras. A série em si é dedicada aos livros, homenagem a eles, logo, é muito interessante observar como a autora vai construindo as suas ideias a partir da composicionalidade da obra. Como Traugott (2005) diz:

A seleção do repertório gramatical pode ser consciente ou não. Escritores criativos e oradores tendem a ser altamente conscientes de suas seleções, outros menos. Essas escolhas são relacionadas aos diferentes registros e ao grau de atenção voltado a uma audiência específica, seja individual ou múltipla. Em todos os casos as escolhas são particularmente, em grande medida, correlacionadas com as estratégias pretendidas e a codificação dessa intenção.   

Durante a narrativa – não só desse, como dos demais exemplares – podemos observar como a palavra importa; em seguida – no segundo volume – é a própria construção da ficção; dessa vez, Cogman apostou na construção dos personagens e no desenvolvimento de seus arquétipos. Mesmo que Vale, por exemplo, siga padrões comuns a detetives, há características similares e díspares em sua composição. O mesmo se dá aos outros personagens e, ainda que essa seja a ênfase nesse volume, não perde o foco dos demais tópicos: a construção da ficção permanece, mas de maneira branda; a palavra continua tendo muito espaço através da Linguagem.

Tratando da escrita, preciso ressaltar que continua fluida, fácil e leve como sempre, porém, houve uma melhora significativa na construção do texto, algo que não sei se é mérito da autora propriamente dita ou da tradução que, definitivamente, está melhor. Um ponto interessante e um cuidado que devo sugerir é: preste atenção em quais palavras são usadas no texto, pois detalhes importam e muito nessa história, principalmente porque há diversos jogos com elas.

Como já mencionado, há uma significativa tomada da autora em relação a construção dos personagens, muito embora já fossem bem desenvolvidos, dentro desse volume, ela foca no desamparo, na solidão, no desespero, no declínio, no ciúme e na superproteção que eles apresentam, ocasionados pelo que ocorreu nos volumes anteriores a este. Cogman nos revela as inseguranças, principalmente de Irene e de Vale, de uma forma que não fez antes, como estão se sentindo culpados ou sozinhos em um mar de caos.

Também há Kai percebendo como Irene se coloca em situações intragáveis e, mesmo entendendo quem ela é, ele ainda não deixa de ser quem é. Isso pode soar confuso, mas há muito de Kai sendo desenvolvido no livro, principalmente, a sua confiança em si mesmo, um pouco de seus traumas após acontecimentos anteriores – o que me surpreendeu, já que ele não é humano – e, pouco a pouco, a confiança que ele deposita na capacidade de Irene de sair viva das situações. Embora pareça que Kai protege demais a nossa adorável e incrível protagonista – a qual cometeu deslizes que me incomodaram –, ela em si se coloca em mais perigo do que deveria, muitas vezes, para não colocar os demais em risco, fugindo do princípio que a união faz a força.

No entanto, ela continua decida e esperta.

Além disso, aparecem personagens dos livros anteriores, como Zayanna, que possuem papéis fundamentais, e outros, como Silver, com menos destaque. Contudo, a raça dos feéricos ganha ainda mais camadas e mais explicações de como funciona o seu mundo, a sua forma de viver e ver os humanos. Nesse terceiro volume, iremos perceber o quanto a dicotomia entre caos e ordem está presente, mas, ao mesmo tempo, afasta-se.

O maior ganho da obra, ao meu ver, é que iremos entender um pouco mais a respeito da Biblioteca, como ela funciona e quem está no controle – ou no possível controle – e haverá momentos em que esse controle estará em perigo. As ideologias políticas continuam ganhando espaço nessa série em que a construção do mundo vai além de muitas que se vislumbram por aí.

Só conseguimos saber a profundidade dessa construção graças ao plano genial do vilão. Por mais que possa soar padrão, achei o vilão muito mais esperto do que os mocinhos, ainda que no final sejam os bons que triunfem. Entretanto, há algumas coisas um tanto incômodas e que ficaram sem explicação, porém, dizê-las é spoiler.

Sem dúvida, para aqueles que amam fantasia, histórias de detetive, mistério e ficção científica, recomendo a coleção de Cogman. A série é muito bem construída e nós acabamos abandonando todos os nossos planos só para continuar desbravando essa história, até que não sobre mais nada. Nem sequer uma página.

REFERÊNCIAS

COGMAN, Genevieve. A Página em Chamas. Tradução de Ana Death Duarte. 1ª edição. São Paulo: Editora Morro Branco, 2018.

TRAUGOTT, Elizabeth Clors e DASHER, e DASHER, Richard B. Regularity in Semantic Change. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.