RESENHA #110: MÚLTIPLAS DEVOÇÕES

AUTORA: Patti Smith
SINOPSE: Saído da pena de uma das artistas mais inspiradoras do nosso tempo, este livro é um testemunho do processo criativo de Patti Smith. Uma bela e original história de obsessão: a de uma patinadora que vive para a sua arte, a do possessivo colecionador que implacavelmente busca o seu prémio, e a de uma relação forjada pela necessidade. Acompanha-a um ensaio que torna mais tangível a origem misteriosa deste inquietante conto.
A iluminação chega-nos quando Smith viaja para o Sul de França até à casa de Camus, encontra a sepultura de Simone Weill no cemitério de Ashford, nos arredores de Londres, e persegue as ruas labirínticas e sem nome da Paris de Patrick Modiano. Escrevendo em cafés e comboios, Patti Smith abre generosamente os seus cadernos de apontamentos e revela a alquimia do seu trabalho, neste vibrante livro sobre a escrita e a razão pela qual escrevemos.

Desprovidas de passado, tínhamos apenas o presente e o futuro.

Devoção é uma palavra que se assimila ao devoto e nele faz sua morada. Devoção, em latim, significa “ação de se dedicar, voto com que alguém se dedica, se consagra, culto, maldição”.

Em Patti Smith, observamos múltiplas devoções, todas elas podem ser consideradas ora benção, ora maldição. Não existe somente um lado em que se escorar quando se pensa em ser devoto, entregar-se totalmente a alguém ou a alguma coisa. O ofício de escritor se vale do mesmo que uma religião, ele é, ao mesmo tempo, algo que alguém se dedica, algo que consagra, mas, ainda mais, é uma maldição. Ser escritor é também ser escravo da pena.

Ou da Musa.

Smith perfaz o caminho de sua escrita, da sua jornada como escritora, através de três pedaços, divididos em um número simbólico e profundo. O primeiro se chama Como a mente funciona: neste pedaço, autobiográfico e narrativo, Smith demonstra como o seu processo criativo se dá, como a sua mente se movimenta e faz as engrenagens girarem. Encontramos elementos comuns e caros a todos os escritores, mas também pequenos fragmentos de Patti Smith. Respectivamente, os acontecimentos e as situações ao entorno do escritor são primordiais para entender o mundo e transportá-los para o papel; em seguida, a autora se dedica a demonstrar como o diário, para ela, é vital.

Através das experiências e observações que faz do ambiente a volta, a cantora vai perfilando e encontrando o seu conto, retocando e remanejando-o aos poucos. Não é uma explicação padrão de como escrever ou como fazer uma história, dando passos e dicas para o escrever bem. Dessa maneira, adentrar o livro com essa perspectiva pode fazer com que grande parte do seu brilho se perca, o que não é recomendado. Essa é uma parte sobre a devoção de Patti Smith em relação à sua escrita e não um manual de como escrever.

A segunda parte, homônima ao título do livro, chama-se Devoção. Aqui, Patti Smith mostra o que as experiências biográficas resultaram no seu fazer poético, dedicando toda uma parte ao que aquelas referências e experiências fizeram com sua escrita e com a sua mente obliterada por ser Musa. Conhecemos, então, Eugênia. Uma menina brilhante, mas que, entre todas as coisas que era capaz de fazer, preferia a patinação artística.

Nessa etapa, outra devoção se apresenta. Não é mais a devoção do escritor, dividindo-se na devoção a outra arte – tão bela e similar, em certa medida, com a escrita – e na devoção do amante. Amaldiçoado pela paixão, aterrorizado pelos próprios problemas e querendo conquistar a liberdade. Assim, mais uma devoção conclui as outras: ser devoto também é ser liberto de outras amarras que prendem você. Há, nessas múltiplas devoções e no conto, diversas possibilidades de leitura e também de aparato ao fazer poético, por mais que não seja tão claro. Os recursos utilizados por ela são delicados, metafóricos e usam de uma linguagem – seja pelo original ou pela tradução – extremamente bem executada.

Embora o conto em si, a princípio, seja bem problemático, a sua problematicidade dá contornos no final sobre a relação amorosa, sobre os homens e como se tratam, sobre a loucura da paixão, o controle, a obsessão: todas facetas da devoção; todas facetas do próprio homem. É um conto ambíguo e amargo, cujo gosto na boca pode ser agridoce ou simplesmente azedo.

A terceira e última parte tem o nome de Um sonho não é um sonho. Mas então, o que seria um sonho? Patti Smith, aqui, voltando para sua autobiografia, narra sobre ir a casa de um escritor que, em certa medida, devota-se, fugindo de hábitos padrões para se sentir honrada, consagrada. Há um jogo metalinguístico muito bem marcado e definido, mais uma vez, não seguindo padrões convencionais.

O ponto chave da devoção dessa parte, ao meu ver, é que se devotar à escrita, também é devotar-se aos outros que se devotaram a ela. Entender a importância deles, por mais que não estivesse lá. É uma mescla interessante entre estar no passar do tempo, em que as horas devoram. Pois é o tempo, como em outras obras da Patti, que regula a sua escrita.

Para gostar desse livro, é necessário deixar claro que não é um manual de escrita. A ideia de Smith não é dar recursos para uma pessoa escrever melhor, mas entender os tempos e devoções dos escritores, principalmente, o dela, pois é o seu processo em jogo e o de ninguém mais. Compreender esse detalhe é fundamental para ver a riqueza dessa obra tão pequena e tão enorme ao mesmo tempo.

Smith, em todos os seus livros, demonstra a quantidade absurda de referências que é capaz de exalar. Aqui, não é diferente. A cantora, exímia escritora, é uma artista completa e que se devota a sua arte, a todas as artes.

Mais uma vez, entende-se a multiplicidade da devoção. Ela se devota a mais de um. A própria devoção já é inúmera.

REFERÊNCIAS

SMITH, Patti. Devoção. Tradução de Caetano W. Galindo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.