RESENHA #107: ALÉM DA SUPERFÍCIE DO ESPELHO

 

AUTORA: Christelle Dabos
SINOPSE: Quando Ophélie é promovida a vice-contista, ela se vê inesperadamente jogada aos holofotes e escrutínio da corte. Seu dom, a habilidade de ler a história secreta dos objetos, é descoberto por todos, e não há maior ameaça aos nefastos habitantes de seu novo lar gélido do que isso. Sob os arcos dourados da capital do Polo, ela descobre que a única pessoa em que talvez possa confiar é Thorn, seu enigmático e frio noivo. À medida que influentes pessoas da corte começam a desaparecer, Ophélie se encontra novamente envolvida em uma investigação que a levará além das muitas ilusões do Polo e a uma temível verdade.

Após a leitura ansiosa e esperançosa do primeiro volume, Os Noivos do Inverno, o qual rendeu uma resenha nossa, o segundo livro de Dabos muda. Ele continua a trazer essa ansiedade, mas a esperança não é mais necessária porque, agora e aos poucos, amarra as pontas da narrativa.

Os Noivos do Inverno é um livro extremamente metafórico, como bem já foi sublinhado antes. No entanto, Desaparecidos em Luz da Lua não é uma obra metafórica como o seu antecessor, ele traz um espectro filosófico e profundo a respeito, principalmente, da relação com Deus. Quem é Deus? O que é Deus? São questões cernes numa narrativa que centraliza a potência da memória.

Farouk, o espírito da Arca do Polo, terra de Thorn, ganha mais destaque, inclusive, do que o par romântico da protagonista. Nessa situação, encontramos um personagem multifacetado e de memória defasada, o que é interessante porque as figuras espirituais são, de certa forma, a construção social. Farouk parece vazio; tal como seu povo. Mas a sua essência assim é porque lhe falta memória e está sempre em busca dela – essa, inclusive, pode ser uma crítica social também, de um povo sem memória que não busca por seus direitos, justamente por ter se esquecido deles. Inclusive, essa associação se mescla à própria metáfora de Archibald, o personagem que reconhece as mazelas de onde mora e observa tudo como ilusão.

Ao que parece, Dabos pode muito bem associar a noção social de que: o povo que não tem memória; vive de ilusão. Essa é uma perspectiva plausível, justamente pelo fato de que a obra se dá em muitos espaços teatrais, inclusive, Ophélie, a protagonista, ganha mais e mais voz a partir de suas críticas nas apresentações no teatro, as quais é obrigada por Farouk a fazer.

Ao falar da protagonista, entendemos muito de sua evolução em relação ao primeiro livro. Por mais que continue sendo um clichê ambulante, ela ainda consegue, passo a passo, ganhar certa voz narrativa, começando nesse espaço em que Farouk lhe dá voz para, através dele, alcançar os seus objetivos. É uma mescla interessante, mas que deixa de lado o desenvolvimento maior de outros personagens, focalizando na filosofia, na construção de universo (ainda), e até pode-se dizer, um pouco, no romance.

O romance evoluiu nesse livro, não muito – o que de fato me agrada –, mas um pouco. Essa evolução, que já era um tanto previsível, entra em destaque no final da obra e mostra-se como necessária para o que virá a seguir. Thorn continua sendo tão clichê quanto Ophélie, porém o aprofundamento da relação mostra mais dele do que dela.

Ao contrário do anterior, esse volume traz uma ideia de crime e mistério interessante, baseando-se provavelmente em obras do gênero, como as de Doyle e Christie. Ophélie, nessa parte da narrativa, precisa não só descobrir a si mesma e o que ocorre a sua volta, mas também quem está desaparecendo com as pessoas no lugar mais seguro do Arco do Polo. Há algo positivo nisso, que é a dinamicidade da obra; por outro lado, traz algo de negativo, também: o fato de que, na verdade, não faz sentido ser ela a fazer isso.

O livro, no geral, tem muitos altos e baixos, mais altos – ao meu ver – do que baixos. A trama é boa, embora tenha muitos clichês; os personagens são muito bem desenvolvidos, ainda que possam mostrar melhor as suas ações; e, não menos importante – o que me encanta na história, na verdade – é a construção metafórica e filosófica de Dabos. Ao contrário de outros livros do gênero, Dabos consegue mesclar a fantasia do Young adult com algo a mais e muito mais profundo. As questões, mesmas e outras, obviamente, permanecem; o final é de deixar qualquer um maluco de curiosidade, porém, o que posso dizer sobre a história é que vale a pena continuar acompanhando para tentar compreender até onde a autora quer chegar com as suas construções sociais, filosóficas e metafóricas. Não é à toa que ganhou um dos maiores prêmios da literatura do gênero.

Sobre a edição. A capa é extremamente bem-feita, a lombada está muito bonita, o único problema é que, facilmente, a letra dourada se desbota, como acontece com os primeiros livros do Riordan, da Intrínseca, provavelmente, do mesmo material. Há alguns erros de revisão, mas nada capaz de assustar os leitores.

Assim, basta dizer que atravessar espelhos é um talento específico para quem consegue ver a si mesmo, como Dabos faz com a sua sociedade e com a história que ela criou. Espero ser capaz de ver ainda mais da obra de Dabos, como a vi agora, neste livro: além da superfície do espelho, finalmente mergulhando nele.

 

REFERÊNCIAS

DABOS, Christelle. Desaparecidos em Luz da Lua. Tradução de Sofia Soter. São Paulo: Editora Morro Branco, 2019.