RESENHA #03: ANTI-CRÍTICA DE LOLITA

 

AUTOR: Vladimir Nabokov
SINOPSE: Irreverente e refinado, este é um dos romances mais célebres de todos os tempos. É também uma aventura intelectual que não deixa ninguém indiferente, um relato apaixonado de uma sensualidade alucinada, uma autópsia implacável do modo de vida americano. De um lado, um homem de meia-idade, obsessivo e cínico. De outro, uma garota de doze anos, perversamente ingênua. A química se faz e dá origem a uma obra-prima da literatura do nosso século. ‘Lolita’ é chocante, desafia tabus, escandaliza. O livro foi incorporado ao imaginário coletivo da modernidade, e até o nome da personagem tornou-se um substantivo corrente, provas do alcance e da genialidade do autor.

Lolita, luz da minha vida, fogo da minha carne. Minha alma, meu pecado. Lo-li-ta: a ponta da língua toca em três pontos consecutivos do palato para encostar, ao três, nos dentes. Lo. Li. Ta. 
Ela era Lo, apenas Lo, pela manhã, um metro e quarenta e cinco de altura e um pé de meia só. Era Lola de calças compridas. Era Dolly na escola. Dolores na linha pontilhada. Mas nos meus braços sempre foi Lolita.

VLADIMIR NABOKOV 

 

Assim começa Lolita, considerado um dos mais importantes – e talvez mais controversos – romances da literatura do século XX. Escrito por Vladimir Nabokov em 1953, só foi publicado pela primeira vez em 1955, na França, depois de sofrer inúmeras recusas de diversas editoras, chegando até mesmo a ser banido por dois anos no ano seguinte de sua publicação.

Qual é motivo de tamanha resistência por parte do público e de editoras?; você deve estar se perguntando. Lolita conta a história de Humbert Humbert, um professor universitário de literatura que tem quarenta anos de idade e se torna obcecado por Dolores, a Lolita, uma menina de apenas doze anos. É mais do que o suficiente para embrulhar o estômago de qualquer um.

Por vezes, quando confrontados com notícias sobre crimes e seus respectivos criminosos, nos questionamos sobre o que se passa na mente de tais pessoas. Lolita é um mergulho profundo na mente conturbada de um pedófilo. Por isso, caro leitor, sugiro que você respire fundo antes de pular.

Procurando recuperar-se de um casamento que terminara por conta de uma traição por parte de sua mulher, Humbert Humbert aluga um quarto com os McCoo, onde conhece a sra. Haze e sua filha, Dolores. Por mais que não tenha gostado da casa e tendo a certeza de que nunca se hospedaria em um lugar como aquele, desprovido de luxos, a ideia de estar perto da menina foi o suficiente para fazê-lo mudar de ideia. No tempo que passa com a família, Humbert se dedica a observar a garota, conhecê-la, aproximar-se dela e tornar-se cada vez mais obcecado pela jovem. Dolores, que não tem uma boa relação com a mãe, desconhecendo o carinho maternal mais básico, vê-se atraída pela a atenção e, atrevo-me a dizer, bajulação, que recebe de Humbert.

Neste momento, sinto-me obrigada a deixar uma coisa clara: Lolita não é um livro sobre amor, sobre gracejos e romantismos, mas um livro sobre obsessões doentias – sendo um pleonasmo extremamente bem-vindo quando se trata de Humbert e seus sentimentos por sua Lolita. No processo narrativo do autor, em um brilhantismo de dar inveja ao legado russo, Nabokov não economiza detalhes para deixar isso bem claro.

No período que Humbert passou com os McCoo, aconteceram inúmeras interações entre o professor e Dolores e nem todas são apenas observações. Em uma das passagens mais importantes deste período, Lola senta-se no sofá com Humbert, colocando suas pernas no colo do homem. Humbert, tão ansioso por qualquer tipo de contato com a menina, vê-se em êxtase ao sentir as pernas da garota tocando suas genitálias, movendo-se de maneira discreta, enquanto conversa com ela, até atingir o orgasmo. Há também outro trecho, talvez não tão impactante quanto este, mas tão significativo quanto. Em uma terça-feira chuvosa, Dolores estava tentando se livrar de um cisco em seu olho.

 

“Está bem aqui”, disse ela, “estou sentindo”. ” Uma camponesa suíça usaria a ponta da língua.” “Para tirar o cisco lambendo?” “É. Posso tentar?” “Claro”, disse ela. Com delicadeza fiz correr meu ferrão fremente por seu globo ocular salgado e giratório. “Que delícia”, disse ela pestanejando. “Saiu mesmo.” “Agora o outro?” “Seu bobo”, começou ela, “não tem na – “, mas então percebeu o pregueado dos meus lábios cada vez mais próximos. “Está bem”, disse ela em tom cooperativo e, debruçando-se sobre seu cálido rosto sardento virado para o alto, o soturno Humbert pressionou sua pálpebra trêmula com a boca. 

 

Por que eu sabia que a cena ocorria em uma terça-feira chuvosa? Humbert documentava cada momento em seu diário, guardando qualquer resquício de Dolores que pudesse obter, uma de suas múltiplas obsessões. Este trecho importante ressalta a confiança que a garota tinha no professor, como sentia-se confortável perto dele. Perto até demais. Em determinado momento, a mãe decide mandar a filha para uma colônia de férias e o leitor já volta a respirar aliviado pela distância imposta entre os dois. Contudo, o leitor precisa passar por mais um momento controverso, pois antes de partir para o acampamento, Lola sai do carro e volta correndo para casa, jogando-se nos braços de Humbert Humbert para beijá-lo.

Existem diversos momentos em que Humbert diz que ela o provocava, sorria e se insinuava. Entretanto, entre todos os momentos, existem três situações mais importantes em que ele diz que a garota tomou a iniciativa e fez o primeiro movimento. Esse é o primeiro deles. Podemos nos perguntar como uma menina de doze anos pode estar insinuando-se para um homem de quarenta anos de idade. Com que maturidade e noção de sexualidade, ela seria capaz de fazê-lo?

O narrador dessa história é o próprio Humbert, qualificado pela literatura e por seus leitores como pedófilo, sofrendo de uma obsessão doentia por uma criança de apenas doze anos. Nabokov mostra o quanto a perspectiva do narrador é fundamental para compreender essa obra em particular, como também toda a literatura.

O professor diz que, no meio de um grupo de meninas, sempre haverá uma ninfeta. O termo vem da palavra grega ninfa, representação mítica de espíritos femininos alvos da luxúria de sátiros e deuses. Humbert se apropriando e utilizando-se da literatura do passado e da mitologia vigente da Grécia Antiga, ele se apropria do termo e o define como “aquela menina que, apesar da pouca idade, tem plena consciência de sua sexualidade, aproveitando-se e, claro, gostando disso”. Para ele, é possível reconhecer uma ninfeta através de sinais inefáveis, como “o contorno ligeiramente felino do malar, a magreza de uma perna ou um braço coberto de penugem e outras indicações que o desespero, a vergonha e o pranto enternecido me impossibilitam tabular”. Define, ainda, a “ninfeta” como “o pequeno demônio mortífero misturado às crianças sadias”.

Para qualquer outra pessoa, estes são apenas sinais de uma criança comum, que não se destacaria das demais baseado apenas em tais apontamentos. Mas isso é o que se passa na cabeça de Humbert, é a sua realidade retratada em palavras exatas. A tamanha precisão da narrativa pode ser até mesmo assustadora para o leitor que, talvez pela primeira vez, verá o mundo através de outros olhos. Olhos esses que observam o seu redor através de um véu de obsessão doentia e perversão – em até mais de um sentido do termo.

Contudo, para manter as aparências, Humbert não poderia simplesmente viver em seu mundo de fantasia com Lolita e esquecer da mãe da garota. A sra. Haze se apaixona por Humbert e confessa seu amor. O professor, tão astuto e sedento por mais tempo com Dolores, incentiva tais sentimentos até que, rapidamente, eles se casam. A real história começa a se desenrolar a partir do momento em que a sra. Haze descobre os diários de Humbert, confronta-o e diz que ele nunca mais voltará a sequer olhar para a pequena Dolores. Então, transtornada, sai de casa, sendo atropelada logo em seguida.

Com a morte da sra. Haze, Humbert resgata Dolores da colônia de férias. Ao encontrá-la, há uma breve conversa sobre os dias da menina no acampamento até ocorrer o segundo momento em que, segundo Humbert, Dolores tomou a iniciativa.

 

“Sabe, senti uma falta terrível de você, Lo.”
“Pois eu não. Aliás fui muito infiel a você, mas não importa nem um pouco, porque você não gosta mais de mim de qualquer maneira. Você dirige muito mais depressa que minha mãe, moço.”
(…)
“Por que você acha que eu não gosto mais de você, Lo?”
“Ora, até agora você ainda não me deu um beijo, não é?” 

 

Após o beijo, Humbert lança-se em uma longa viagem de carro, sem destino definido, juntamente com a menina. Uma maneira de estar perto dela e longe do julgamento dos conhecidos. É nesta longa viagem que boa parte do livro se desenvolverá, traçando com detalhes a complicada relação entre ambos personagens.

Por conta de tamanha controvérsia contida em suas páginas, Lolita é um constante alvo de críticas. Uma rápida busca em qualquer rede social deve resultar em comentários suficientes para manter qualquer um ocupado por dias. Muitos desses comentários podem afastar – assim como me afastaram – desta leitura por muito tempo. Contudo, inúmeras opiniões são infundadas e até mesmo citam trechos que não existem de fato dentro da obra.

Há, sim, trechos que irão revirar o estômago de muitos leitores. É preciso mergulhar neste livro com bastante cuidado.

 

“Quer dizer”, persistiu ela, ajoelhando-se agora em cima de mim, “que você nunca chegou a fazer tudo quando era mais novo?”.
“Nunca”, respondi sem mentir.
“Está certo”, disse Lolita, “pois vamos começar agora”.  

 

A primeira relação sexual é o terceiro momento crucial em que Humbert diz que Dolores tomou a iniciativa. Talvez esse seja o fator que leva tantos leitores a acusarem o livro de romantizar a pedofilia. Entretanto, existe um fator ainda mais essencial que deve ser levado em consideração: esse é o testemunho de um homem condenado.

 

“Senhoras e senhores do júri, a prova número um é aquilo que os serafins, os próprios serafins desinformados e simplórios com suas asas preciosas, invejaram. Contemplai esse emaranhado de espinhos.”  

 

Desde a primeira página – e inúmeras vezes ao longo do texto – Humbert se dirige ao júri, sendo esse júri ninguém mais além de você mesmo, caro leitor, pois você será aquele que, ao ler a narrativa, julgará Humbert.. A confissão de um crime tem o intuito de suavizar a pena e o professor gasta todo seu vocabulário nesta missão. O criminoso, nosso narrador, sempre enfatiza como gastou uma pequena fortuna em presentes para Dolores, roupas e sapatos, tudo o que ela precisasse para viver com conforto, mesmo que tenha vivido em hotéis durante o tempo que passou com ele. Repete que sempre se preocupou com o bem-estar da menina, oferecendo sempre a melhor comida, a melhor cama, os melhores passeios pelos melhores pontos turísticos. Alguns leitores podem confundir isto com amor.

Todavia, existe um abismo entre Lolita e o amor verdadeiro. O narrador utiliza todo o seu charme gramatical para fazer com você se encante por ele, fazer com que veja a relação dos dois com a mesma ternura que ele consegue ver. Ele tenta falar ao seu ouvido, como se partilhasse algo secreto e especial. Chegue um pouco mais perto, caro leitor, pois eu vou lhe contar um segredo: definitivamente, Humbert não é um narrador confiável. Ele vai tentar dissuadi-lo, conversar com você como se fosse um amigo, tentará exaustivamente humanizar seu comportamento e justificar suas atitudes. Fará você se sentir próximo da pessoa por trás das palavras .

A escrita de Nabokov é imprescindível e de uma destreza imensurável. Realizada de forma magistral, traz uma execução tão bela e polida que cada frase soa como poesia – e o é, na verdade, uma poesia em formato de prosa. Seus parágrafos carregados de divagações e filosofias podem fazer com que alguns leitores a classifiquem como densa e, até mesmo, monótona em certos momentos. Porém, essa é a principal arma de Humbert: a escrita de Nabokov cria cenários onde até mesmo os trechos mais tórridos são descritos com esmero e sofisticação, com a qualidade que um professor de literatura, embebido dos clássicos poderia trazer ao seu júri. Um labirinto de palavras desenhado para confundir o leitor desatento ou descompromissado com a leitura, aquele que, mesmo que encontre a saída no final do parágrafo, não saberá apontar o que viu pelo caminho. Enquanto o leitor boceja através da divagação filosófica, não percebe o que realmente está acontecendo ali.

A sagacidade de Nabokov é notável neste ponto. Por mais que o narrador esteja usando a narrativa para se defender, o autor não pode deixar de lado a crítica severa ao assunto abordado. A obsessão de Humbert fica clara, mesmo que adoçada por palavras bonitas, em pequenos detalhes.

 

E hoje me surpreendo a pensar que nossa longa viagem só fez conspurcar com um sinuoso rastro de gosma o país adorável, confiante, sonhador e imenso que àquela altura, em retrospecto, não era para nós mais que uma coleção de mapas surrados, guias desconjuntados, pneus gastos e os soluços dela à noite – toda noite, toda noite – assim que eu fingia adormecer.

 

Pequeno detalhes, soltos em meio a informações desinteressantes, como diminutas pistas deixadas por um criminoso que anseia ser descoberto. Um criminoso poeta, poderia dizer! Um criminoso que, a partir das palavras, ludibria o leitor a pensar que era romântico, bonito. Mas não é.

É sabido que ele gastou muito dinheiro em presentes para Dolores, mas é preciso perceber que ela só ganhava presentes quando estava chateada e, por isso, mantinha-se longe dele. Quando estava aborrecida, ganhava roupas, um passeio ou alguma comida que gostasse. Humbert afirma que precisava planejar o dia, sempre com algum grande prêmio para Dolores, para manter a garota entretida e de bom humor, para que enfim concordasse em suprir os desejos dele. Nem por isso o autor deixa de mostrar, mesmo que discretamente, como ela estava infeliz e vivia de subornos.

Em alguns momentos, o leitor não precisa brincar de Sherlock Holmes para perceber as pistas do nosso narrador. Em um primeiro momento, ele não conta para Dolores que a mãe está morta. Essa informação é utilizada em um momento em que a menina não está satisfeita, quase exibindo sua situação para um estranho, e, dessa forma, Humbert usa o fato como chantagem. Quando Dolores percebe que não tem mais ninguém além do professor, chora em seu colo. Nesse instante – e em outros -, Humbert se utiliza de terror psicológico, dizendo que, caso a menina conte para alguém o que acontece entre os dois, será levada para um orfanato, onde será cuidada por pessoas horríveis que não concederão nenhum tipo de liberdade. Assustada, Dolores mantem seu silêncio. O seu discurso se estende por páginas e páginas e, mesmo que ele diga que não gostou de dizer tais coisas para a menina, reforça que foi necessário para mantê-la com ele.

Muitos aspectos podem levar alguns leitores a interpretar Lolita como uma história de amor – o constante cuidado com Dolores, a maneira como ela se torna a prioridade de Humbert, as atitudes tomadas pela menina, sempre fazendo todo o possível para que ela tenha o que quer, o quase desespero que sente ao se imaginar longe dela – o que é problemático. Assim como diversos fatos fazem com que inúmeros leitores condenem o livro e até mesmo aconselhem que ninguém mais o leia. Na verdade, Lolita nada mais é que uma excelente – e assustadora – crítica social, trabalhada com maestria. A história traz uma luz incômoda sobre a pedofilia e sobre as relações entre vítima e pedófilo. É muito fácil classificar pedófilos como o homem velho e estranho que se esconde em parques para observar crianças de longe – coisa que Humbert admite ter feito – pois isso dá um rosto e um alvo para ódio das pessoas. Contudo, ao chegar no final deste livro, o leitor perceberá que essa visão de mundo é muito limitada e controversa. Dolores sofreu abusos físicos e psicológicos de seu tutor legal, do homem culto e bem vestido que frequentava sua casa. Não saber o que temer ou o que odiar é um dos sentimentos mais desconcertantes e conflitantes que existem para o ser humano. Mas, deve-se ressaltar que não falar sobre alguma coisa, não faz com que esta coisa desapareça.

Lolita é uma obra-prima pouco reconhecida em sua época, ainda sendo pouco reconhecida na contemporaneidade pela massa que se reprime na superficialidade do que a narrativa apresenta. De escrita magistral e trama incômoda, é um clássico da literatura. Literatura essa que se classifica como incômoda, que se estende aos problemas sociais e faz com que o leitor pense, aproprie-se da história e vislumbre o mundo como ele é para, enfim, trazer luz ao caso.

Deve ser apreciado com cuidado, mas apreciado de qualquer jeito. Uma excelente fonte de inspiração para escritores que buscam criar enredos, tal como uma teia de aranha prende suas vítimas, Nabokov prende seus leitores em seu trabalho. Além de tudo, Lolita é uma obrigação para qualquer leitor que admira bons livros. Incita discussões, faz nascer pensamentos e borbulhar emoções. Cumpre, com assustadora eficiência, o que qualquer literatura que se preza deve fazer: instigar e provocar.

Mergulhe de cabeça nesta história, caro leitor. Será uma leitura conturbada. Talvez você esteja sem fôlego no final, talvez se afogue no meio do caminho, no entanto, não deixe de mergulhar.

Posso garantir que, ao fechar este livro, você não será mais o mesmo.

 

REFERÊNCIAS:

Lolita / Vladimir Nabokov; tradução Sergio Flaksman; posfácio Matins Amis – I. ed. – Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.