RESENHA #01: COMO RESPIRAR A VIDA?

 

 

Já não consegue mais respirar a vida
LUIZ FERNANDO TEODOSIO

 

A questão cerne da narrativa não é o verbo, necessariamente, como o título parece insinuar com o nome Verbos Fantásticos, contudo, o narrador consegue subverter a situação e fazer com que seja: pois deprimir é verbo. Verbo esse que possui palavras derivadas como deprimido, aquele que se deprime, depressão – a doença que faz alguém estar deprimido. E, a partir desse momento, vê-se o significado da história: o que é a depressão se não um declínio verbal e mental?

A sinopse fornecida antes da leitura é breve e muito simples, sem entregar – de fato – absolutamente nada. Sem a leitura prévia da história, não há realmente como compreender o que ela irá transmitir – a dica soberana, entre todas, é o aviso unido à sinopse: uma história que mexe com a depressão e suicídio, atenção. No entanto, após a leitura, você é capaz de ver sentido nesse pequeno período que define o que a trama irá propor – e ela cumpre com sua proposta muito bem:

 

“Quando o infinito se torna finito, um Verbo cresce perante sua vítima e dá início a ações capazes de levá-la a um fatídico destino”.

 

Qual seria o fatídico destino dos homens? Em todos os lugares do mundo, em todas as pessoas, três verbos sempre estão presentes: nascer, viver e morrer. Os três fazem parte do destino fatídico de todos os homens que se declinam diante de sua própria tragédia. Morrer é a tragédia de todos, a forma que se vive até morrer já é a tragédia grega de alguns.

Dessa forma, não se sabe se a tragédia é viver ou morrer. Qual dos dois verbos é a resposta possível? Nesse céu infinito de possibilidades de um ser vivente, que respira a vida e vive, há muito mais respostas. No entanto, essas respostas podem se apagar, aos poucos, tornando-se finitas até o segundo que não há mais esperança e nem objetivo; é o que essa história trabalha: deprimir como um verbo-sujeito presente.

Entretanto, como todo verbo transitivo, ele precisa mais do que somente sujeito, ele também necessita de um complemento. O complemento da narrativa, talvez fosse seu protagonista, talvez não fosse; é aquele que sofre as ações como um sujeito de voz passiva – como todos os homens são passivos a Nascer, Viver e Morrer. Esse complemento é ninguém menos do que Hugo Bonança, um rapaz descrito pelo narrador como qualquer um, pois Hugo, eu e você, não somos especiais, somos parte do meio e também sofremos com os lapsos da natureza sem podermos, embora lutemos, ir contra a maré da realidade inegável.

Somos passíveis a todos os verbos, somos também agentes quando assim devemos ser. Essa história fala sobre a passividade do homem, sobre o declínio, mas também sobre a busca. Nós lutamos contra a natureza, mas nem sempre vencemos – o que não reduz nossa inspiração e força de vontade.

Contudo, essa é uma narrativa que trabalha, além de tudo, o declínio: a perda, outro derivado verbal de perder. E é nesse processo que vemos um verbo subjugando um homem; o verbo declinando o homem da mesma forma que o homem declina enquanto recita o pronome junto de um verbo e seus múltiplos tempos verbais, consecutivas vezes. Essa perda pode vir de muitas formas, pode ser um acidente, um esquecimento ou um furto, pode até ser mesmo um roubo.

 

“Não é tarefa difícil roubar um número finito de estrelas quando alguém deixa de sonhar.”

 

No final do primeiro parágrafo, vemos essa deslumbrante citação. Ela é extremamente poética e representa – mesmo que a partir do roubo – a perda de um homem que deixou de sonhar, deixou de acreditar que é capaz. A construção de tal parágrafo, inicialmente, é confusa e até diria que existe um erro de coerência verbal, contudo, seu final fecha com um teor incrivelmente bem construído, visto que é uma narrativa que trabalha a depressão e nada melhor do que a metáfora a respeito das estrelas, da luz, sendo roubada – e essa execução não é complexa ou difícil para o narrador em primeira pessoa, Deprimir, porque o próprio indivíduo, o próprio Hugo, o próprio nós, simplesmente entregou a si mesmo, e junto com a perda das estrelas, esvai-se a esperança.

Como diria Andrew Solomon, em seu livro O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão: “A depressão severa é um nascimento e uma morte: é ao mesmo tempo a presença nova e o total desaparecimento de algo”. O que, dentro de nós, desaparece? E o que dentro de nós surge?

Tal como esse livro, tão poético e conceituado de Solomon, há também, na narrativa de Teodosio, a depressão como presença e a perda da esperança, a perda do significado, do sentido – do que quer que esse sentido e significado, como as palavras possuem, tenham. Espaço por espaço, pé ante pé, o que vem sendo construído, sendo bem elaborado e moldado é a própria depressão que assola tantos corações na contemporaneidade. É possível se perceber dentro de Hugo, fora de Hugo – instintivamente, todos podemos ser e, em certa medida, somos Hugo.

Solomon também diz que “a dor é a nossa primeira experiência de desamparo no mundo, e ela nunca nos deixa”, porque a dor faz parte do mundo e faz parte do nosso crescimento e de quem somos. Mas qual é a medida do sofrimento? Até que ponto podemos levar a dor adiante sem nos calcarmos diante dela? Há resposta para tais perguntas? Há mais de uma resposta? Paula Fontenelle, autora brasileira e com experiências pessoais acerca do tema suicídio, também relata a respeito da dor, comentando que “quem quer se matar não quer terminar com a vida; quer acabar com a dor”. E é essa dor, intrínseca do mundo, intrínseca do que somos, que jamais pode ser medida em sua plena subjetividade por ninguém, por nenhum de nós, é o que faz alguém desistir, faz alguém morrer como – Desistir e Morrer – dois verbos separados e distintos que se unem como sinônimos.

Mas o que seria essa dor? O que ela transmitiria a nós? Como ela se desenvolveria dentro desse processo de esmiuçar a si mesmo? Teodosio tende a dar alguns exemplos poéticos durante a sua narrativa, trazendo possibilidades a respeito do que é essa perda a partir da perspectiva e das causas ministradas pelo verbo Deprimir.

 

“Curou-se do resfriado, mas não do paladar doente. Percebeu, logo depois, que a vida como alimento também se tornava insípida. Ele chorou, e sua língua saboreou as lágrimas.”

 

Outras perdas significativas, embora menores, aparecem diante de Hugo. Ele não entende a priori, mas seu narrador e fantasma – ou presença nova e que se renova durante a trama – sabe e relata ao leitor. Ele ficou doente e não pode mais sentir o gosto. Talvez eu seja uma apreciadora dos sabores e uma desejosa de novos gostos, contudo, acredito que o sabor é o que tempera a vida: como viver sem o tempero que a vida proporciona? O que toca a língua? O que dá sentido àquilo que parece nulo. Teodosio, junto ao seu narrador, diz o que tempera aqueles instantes subsequentes: as lágrimas. Não há nenhum representante melhor do que a exposição plena dos sentimentos, metaforizada pelo verbo chorar.

Mas, em vista do cotidiano, observamos que tudo acaba, tudo tem um fim – as lágrimas não são exceção. Assim sendo, Deprimir precisa dar mais um passo e tornar-se, de vez, opaco. Se tirou o gosto, se tirou os sonhos, o que resta é tirar o brilho e nada mais representa a vida do que o vibrar brilhante das cores. Em uma sociedade que a visão é primordial e ferramenta para sobreviver, o cinza é a colisão de tudo que não há nada dentro de si. É a chama vermelha que se apagou em fumaça cinzenta.

 

“Também não pude deixar de infligir no garoto a ação categórica que o transformou em alguém inapto a enxergar as cores do mundo, exceto uma. Cinza. Hugo não distinguia mais a cor do céu, do gramado, das flores, da vida. Toda a embalagem do mundo lhe pareceu cinzenta, e seu conteúdo, melancólico.”

 

O desfecho da história é uma reviravolta surpreendente, capaz de ser alojada no coração de cada um de nós. A escrita do autor é extremamente poética e subjaz mentes que se deliciam com poesia, contudo, nem sempre sua poesia em formato de prosa atinge seu potencial máximo, pois conta com pequenos desvios linguísticos aqui ou ali – nada graves, devo ressaltar. Além disso, numa perspectiva pessoal, a trama parece se perder no último parágrafo – ela não deixa de ser a resposta de como – tentar – respirar a vida. Ou a tentativa de, aos poucos, a cada inspirar, expirar, inspirar e expirar de novo: achar alguma coisa, por mais ínfima que seja.

 

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REFERÊNCIAS

FONTENELLE, Paula. Suicídio – o futuro interrompido: guia para sobreviventes. 1ª edição. São Paulo: Geração Editorial, 2008.
SOLOMON, Andrew. O demônio do meio-dia: uma anatomia da depressão. Tradução Myriam Campello, 2ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.