DICA #07: QUESTÃO DE SENTIDO

 

Se você já teve a oportunidade de conversar com um bêbado, pode ter observado a incrível capacidade que eles têm de criar sentenças aparentemente desconexas que só fazem sentido em sua própria mente. E, bom, claro, também tem a parte dos discursos emocionados ou raivosos, a ressaca e mais uma quantidade de fatores que renderia muitas histórias. Entretanto, no presente texto o que nos interessa é o que agora eu chamarei de discurso do bêbado estereotipado, pois, claro, aqui estamos fazendo uso de um estereótipo. Falas como:

 

“Aí ele foi lá e… Cara, eu já disse que eu te amo hoje? Nossa, que vontade de comer um abacaxi. Garçom, manda mais uma…”

 

Apesar de possíveis e muito prováveis em um balcão de bar, são comumente apontadas como incoerentes. É o mesmo adjetivo que usamos para classificar discussões que parecem não levar a lugar algum, ou que parecem levar a algum lugar que não faz sentido.

Coerência e sentido são apenas dois dos aspectos que estão envolvidos no processo maior que é a produção e a recepção de um texto. Apesar de ter começado por um exemplo de texto oral, o assunto principal que eu gostaria de tratar é o texto escrito, uma vez que o objetivo principal é ajudá-los a analisar esses aspectos nesse tipo de escrita. Entretanto, os aspectos de que aqui falarei podem, com algumas adaptações, ser aplicados à maioria dos casos.

Durante o processo de produção um texto, podemos imaginar algumas questões envolvidas:

 

• Quem é o escritor: isso diz respeito, principalmente, a seu universo interno, ou seja, crenças, visão de mundo, bagagem de leitura e tudo que constitui o seu pensamento para a formação do texto.

• Sobre o que ele escreve: o assunto de um texto determinará muito de seu conteúdo informacional e a sua estruturação.

• Em que época o texto foi escrito: o contexto de produção de uma obra influi muito no que é passado nela.

• Com que objetivo o texto foi escrito: é um texto narrativo ou dissertativo? É argumentativo ou expositivo? Tudo isso influencia na composição textual e também na mensagem final.

 

Por outro lado, o processo de recepção de um texto também envolve uma série de aspectos, como por exemplo:

 

• Quem é o leitor: assim como no caso do escritor, o chamado universo interno do leitor influencia na hora da leitura e no que vai ser absorvido dela.

• Em que época o texto foi lido: o contexto de recepção de uma obra também é essencial para a forma como ela será lida.

• Qual o meio de circulação do texto: ele circula em meio digital ou trata-se de um livro impresso? É voltado para o ambiente acadêmico ou o público em geral?

• O objetivo com que se está lendo: se um texto é lido com o objetivo de ser criticado, ele será recebido de uma forma; se está sendo lido por entretenimento, após ser recomendado por amigo, será recebido de outra. Como já foi dito pelos nossos administradores em outros textos, a forma como recepcionamos um texto pode alterá-lo completamente.

 

Finalmente, resta o elemento que integra e perpassa tanto o ato de produzir quanto o de receber: o próprio texto enquanto construção verbal. Resumidamente, podemos afirmar que são estes pontos – produção, recepção, construção textual – que determinarão se o leitor conseguirá, de fato, atribuir sentidos e interagir (social e culturalmente) com o que lê.

Sabendo disso, podemos compreender os casos em que dois leitores divergem muito na hora de opinar sobre um mesmo texto: cada um tinha seu próprio universo interno, leu em um contexto específico, às vezes em um meio de circulação específico e isso influiu na hora de interpretar. Além disso, um pode ter se deixado influenciar pelo que sabia do autor e de sua época, o outro não. Um deles pode ter se atentado para o uso de alguns recursos textuais (digamos, as metáforas, das quais inclusive já falamos aqui) de forma diferente do outro e, por isso, atribuiu sentidos diferentes a algumas passagens de uma história, o que ressignificou, para ele, todo um livro. É um exemplo fictício, claro, mas é bem verossímil, além de bastante recorrente.

Segundo o dicionário Aurélio, coerência é a “harmonia entre ideias, ou acontecimentos” e, grosso modo, podemos dizer que coerente é o que faz sentido. Contudo, como já pudemos ver até aqui, ser coerente não é um estado dado (o que garantiria que um texto fosse lido como coerente independente de quem o lê), mas uma construção que dependerá de tudo que já foi dito antes. Dessa forma, o que podemos afirmar com certeza é que o autor pode se esforçar para ser coerente, mas jamais garantir que seu texto será considerado, por todos, como tal. Seus esforços, então, podem se concentrar para trabalhar aspectos como uma escrita que vise corresponder à intenção pretendida; que leve em conta o contexto de recepção de sua época e, também, o meio em que ele pretende que seu escrito circule.

Já o leitor, para avaliar a coerência de algo, pode levar em consideração esses mesmos tópicos, porém pelo seu ponto de vista, ou seja, ele jamais saberá a real intenção do autor, mas pode analisar se o texto conseguiu causar algum efeito tendo em vista a forma como foi estruturado, e se esse efeito é condizente com o meio de circulação e o gênero adotado.

Aproveitando o gancho criado ao se falar em forma de estruturação do texto, agora se torna um momento propício para abordarmos a coesão. Para a química, a coesão é a “força que une entre si as moléculas dos líquidos ou dos sólidos”. No caso da escrita, o conceito não diz respeito a algo muito diferente. Um texto coeso é aquele que tem as suas partes conectadas, de forma que seja possível estabelecer, dentro dele, uma continuidade. Lendo isso, é possível perceber que a coesão e a coerência são mais que amigas, são friends. Interligar bem as partes de um texto auxilia – e muito – o processo de interpretação e interação, pois nos permite enxergar mais claramente o que está sendo dito, por que está sendo dito e como está sendo dito.

Mas, Letícia, como podemos conectar internamente um texto?

Bom, a língua nos oferece inúmeros recursos para isso, por exemplo:

 

• Os advérbios e locuções adverbiais: eles podem desempenhar muitas funções dentro de um texto, das quais podemos citar algumas, como, por exemplo, situar algo no tempo (Ontem, eu saí); modalizar algo, ou seja, dizer o modo como algo deve ser lido (Infelizmente, não pude sair); iniciar a conclusão de algo (Enfim, pudemos partir).

• Os pronomes: embora o conceito de pronomes como substitutos do nome seja problemático, aqui ilustra bem a função que eles desempenham no texto. Ele(a), aquele(a), isto, uns, -lo, -la são exemplos de pronomes que podem entrar em substituição a um nome para que ele não seja repetido (Morgana gosta muito de café. Morgana saiu para comprar café/ Morgana gosta muito de café. Ela saiu para comprá-lo).

• As conjunções: conhecidas como as palavras responsáveis por conectar duas orações, são muito úteis para estabelecer conexões. Como exemplo, temos as relações de causa/consequência, das quais já falamos quando explicamos os ‘porquês’ (Antonieta não foi para o baile porque estava resfriada); existem também as de finalidade (Júlio saiu para que Ramon pudesse conversar com Loreta em paz); as de adição (Ele queria ser feliz e rico); as de adversidade (Ele queria ser feliz e rico, mas tinha preguiça); e inúmeras outras, afinal, muitas são as conjunções e as possibilidades.

 

Nesse caso, é possível falar em uma conexão efetiva entre as partes, pois a coesão diz respeito a elementos visíveis no texto, ou seja, não tão dependentes do que é externo e mutável (como contexto histórico e social, bagagem de leitura, etc.).

Além disso, é necessário observar que a coesão é parte integrante no processo de construir sentidos e, portanto, de atribuir coerência. Em suma, é o conjunto inseparável – o que está sendo dito e como está sendo dito – que constitui o texto; e é a sua produção, recepção e sua própria constituição que determinarão seus sentidos. Portanto, é importante levar tudo isso (ou, ao menos, tentar) em conta na hora de escrever e ler.

Por fim, lembrem-se, ler é um esforço coletivo, não um campo de guerra: antes de acusar um escritor por seus erros, tenha certeza de que você deu seu máximo como leitor e vice-versa. O texto é uma co-construção. Não o transformemos em algo destrutivo.

Até a próxima!

 

REFERÊNCIAS

AURELIO, O mini dicionário da língua portuguesa. 4ª edição revista e ampliada do mini dicionário Aurélio. 7ª impressão – Rio de Janeiro, 2002.
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa Disponível em: <https://www.priberam.pt/>. Acesso em 14 de maio de 2017.