ANÁLISE #01: AS CONFISSÕES DE SEXTON

ANÁLISE DO POEMA: As It Was Written | Como foi escrito
AUTORA: Anne Sexton

Anne Sexton (1928 – 1974), foi uma escritora estadunidense ganhadora do Prêmio Pulitzer de 1967. Nunca ouviu falar? Pois é. Infelizmente, não há muito de sua obra traduzida para o português. Talvez pela temática de seus poemas: suicídio, depressão, isolamento, sexualidade e feminismo. 

A poetisa passou boa parte de sua vida lutando uma longa batalha a qual não conseguiu vencer. Teve uma vida atribulada: um pai alcoólatra, e uma mãe frustrada por não ter alcançado suas aspirações profissionais; um possível abuso sexual, quando ainda criança; uma tia suicida; depressões pós-parto; tentativas de suicídio, seguidas por internações em instituições psiquiátricas; um possível transtorno de personalidade limítrofe; um casamento cercado por discórdia e abuso físico; comportamentos adúlteros e emocionalmente instáveis; mais tarde, um divórcio que a levou a extrapolar ainda mais suas dosagens de álcool e pílulas para dormir.

Em meio a tantos problemas mentais, seu terapeuta a aconselhou que ela escrevesse seus sentimentos. Após algumas oficinas e aulas de poesia na aclamada Universidade de Boston, ao lado de outros ícones da literatura como Sylvia Plath e George Starbuck, ela resolveu se aventurar com as palavras. Como os demais colegas com quem estudou, Anne tinha uma habilidade fora dos padrões em ecoar sua vida em seus poemas, fazendo com que sentimentos como a angústia e o vazio transbordem dos olhos para o coração do leitor.

Trago, hoje, um poema que faz parte da minha seleção de favoritos, e proponho uma interpretação a ele.

 

COMO FOI ESCRITO

Terra, terra
passeando em seu carrossel
rumo a extinção,
direto às raízes,
engrossando seus oceanos como molho,
ulcerando em suas cavernas,
está se tornando uma latrina.

Suas árvores são cadeiras retorcidas.
As flores gemem aos seus espelhos,
e choram por um sol que não usa uma máscara.
Suas nuvens vestem branco,
tentando se tornar freiras
e oram novenas aos céus.

O céu é amarelo com sua icterícia,
e suas veias se derramam nos rios
onde os peixes se ajoelham
para engolir cabelo e olhos de bode.

Em suma, eu diria,
o mundo está se estrangulando.
E eu, em minha cama toda noite,
ouço meus vinte sapatos
conversarem sobre isso.

E a lua,
sob seu capuz escuro,
cai do céu a cada noite,
com sua boca vermelha e faminta
para sugar minhas cicatrizes.

(Tradução por Fernanda Folle, 30/08/2017)

 

O carrossel, veículo de transporte que, ironicamente só se locomove em círculos, sem sair do lugar. Interessante notar que ele é utilizado em situações bem específicas, a sua maioria envolvendo eventos festivos. A humanidade, portanto, segue com sua rota autodestrutiva, encantada pela beleza e a diversão que as voltas lhe oferecem, preferindo ignorar quaisquer perigos ou infortúnios.

Oceanos e cavernas se tornam molhos e feridas, uma imagem poderosa, porém, desagradável. Mas, o que eles significam? Quanto ao oceano, temos a alegoria para o conhecimento e a origem do mundo. Isso tornou-se um molho, mistura homogênea: temos a conversão da complexidade da vida em algo simplório, uma vez que o molho é feito de ingredientes básicos. Percebe-se que as origens – aquilo de mais íntimo no ser humano – perdem o seu valor, tendo em vista que, apesar de repletos de oportunidades de fazermos o melhor de nós mesmos, continuamos enclausurados aos nossos sentimentos mais obscuros.

De acordo com o Dicionário de Símbolos, a caverna remete-nos ao útero materno, ao renascimento.

 

“Nas tradições gregas, a caverna representa o mundo. (…) Em Platão, o simbolismo da caverna implica, portanto, uma significação não apenas cósmica, mas também ética ou moral. A caverna e seus espetáculos de sombras ou de fantoches representam esse mundo de aparências agitadas, do qual a alma deve sair para contemplar o verdadeiro mundo das realidades – o mundo das Ideias

 

Ao ulcerar uma caverna e fazermos a associação com o platônico Mito da Caverna, emerge uma alegoria notável: as ilusões do eu-lírico lhe foram expostas, causando várias chagas, que vão aos poucos a destruindo. Até mesmo as possibilidades de renascimento (de reinventarmo-nos ou assumirmos um outro estilo de vida), ou de permanecermos entorpecidos pelo mundo meramente físico, se tornam algo lancinante. Tudo isso faz com que a realidade em que se vive transforme-se numa latrina, ou seja, num vaso sanitário, algo que invoca repulsa. Sexton utiliza as palavras de forma que, os retratos que delas afloram, nos sejam uma transcrição fidedigna da melancolia e a desesperança presente em todos que já sofreram um trauma alguma vez.

 

“Suas árvores são cadeiras retorcidas.
As flores gemem aos seus espelhos,
e choram por um sol que não usa uma máscara.”
 

A árvore, uma das metáforas mais amplamente usadas e difundidas na poesia, trata de uma relação de verticalidade, na qual se estabelecem relações entre o céu e a terra. Relação essa que está comprometida, pois as árvores tornaram-se cadeiras retorcidas, figuras disformes nas quais não podemos nos apoiar ou descansar quando o fardo de viver estiver muito pesado. Aqui, é possível até dizer que o transcender da vida foi comprometido, e o eu-lírico encontra-se emocionalmente esgotado.

Símbolo do amor e da mulher, as flores gemem ao espelho, aquele capaz de refletir a luz, ou seja, “a verdade, sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência”. Aqueles que tem algum amor dentro de si clamam, então, por um Deus (simbologia primordial do sol), alguma crença, capaz de lhe ceder luz e calor genuínos – que não usa máscara, conforme diz o poema.

 

Suas nuvens vestem branco,
tentando se tornar freiras
e oram novenas aos céus.”
 

As nuvens estão associadas à metamorfose, devido a sua “natureza confusa e mal definida”, enquanto o branco simboliza ou a ausência ou a soma das cores. O eu-lírico menciona pessoas que se revestem desse vazio, e buscam preenche-lo ou através da religiosidade ou do poder das palavras (lembrando que novenas pode estar em seu sentido figurativo, também), tentando atingir um novo estado de ser, buscando, em meio a suas lacunas, alcançar um novo patamar: o céu.

 

“O céu é amarelo com sua icterícia,
e suas veias se derramam nos rios
onde os peixes se ajoelham
para engolir cabelo e olhos de bode.”
 

Esse que, diferente de cumprir a clássica metáfora da transcendência da essência humana anteriormente tida como algo deplorável – o momento em que se atinge o Mundo das Ideias -, está contaminado com icterícia, um tipo de síndrome que deixa a pele e os olhos dos afetados amarelada, devido ao aumento de uma substância naturalmente gerada pelo nosso organismo. Ainda no Dicionário dos Símbolos, entre os diversos significados da cor amarela, tem-se aquele que, à minha interpretação, casa com o sentido do todo:

 

“Ela é, então, a anunciadora do declínio, da velhice, da aproximação da morte. (…) amarela é também, para os chineses, a direção do Norte ou dos abismos subterrâneos onde se encontram as fontes amarelas que levam ao reino dos mortos.”

 

O local ao qual acreditaram se livrar da negatividade e da angústia, duplica-lhes esses sentimentos. As palavras nas quais buscavam conforto, lhes falharam. Nesse lugar, a morte e a decadência se alastram por todos os cantos: os peixes, responsáveis pela propagação da vida nos oceanos – que viraram molho – se alimentam de olhos e cabelos de bode. Uma imagem intensa e de significado catastrófico.

Os olhos, obviamente ligados à percepção intelectual, à maneira mais direta pela qual percebemos e somos percebidos pelo mundo; os cabelos, representantes da virtude e da força espiritual, um vínculo que “lhe permite ser usado como um dos símbolos mágicos da apropriação, até mesmo da identificação”. Numa interpretação mais direta, os humanos, teoricamente os salvadores, destroem a mente daquele tido como poderoso (a figura do bode, inevitavelmente associado ao Satã) ou, numa segunda possibilidade, destroem aquilo que servia como uma absolvição de seus pecados (bode enquanto sacrifício) por completo, aniquilando-o.

Acredito que a segunda opção seja mais viável, pois dialoga com tudo o que foi analisado até o momento, mantendo a congruência unitária do poema. É exatamente essa a mente de um suicida: dificilmente há um lugar na Terra ou alguém capaz de o propiciar o conforto necessário para extinguir suas mazelas; assim, facilita-se o comportamento autodestrutivo para consigo e com os outros. As percepções se distorcem e os retorcem. Simultaneamente, e ao contrário daquilo acreditado por muitos dos suicidas, tampouco a morte findará o sofrimento.

 

“Em suma, eu diria,
o mundo está se estrangulando.
E eu, em minha cama toda noite,
ouço meus vinte sapatos
conversarem sobre isso.”
 

Diz o eu-lírico em seguida que “o mundo está se estrangulando”, resumindo triste e lindamente nossas conclusões ao longo dessa análise. O que vem em seguida é interessantíssimo: os sapatos, conversando sobre a ruína do mundo.

 

“Nas tradições ocidentais, o calçado teria uma significação funerária: um agonizante está partindo. O sapato, ao seu lado, indica que não está em condições de andar, revelando a morte. Mas esta não é a sua única significação. Simboliza a viagem, não só para o outro mundo, mas em todas as direções.”

 

Percebe-se a preparação para o fechar das cortinas – tanto da vida, como do poema. Imagine a cena: estar deitado em sua cama, pronto para se render ao sono após um longo dia, e ouvir seus calçados reforçando o seu pensamento sobre como o mundo está horrível. Essa imagem é de uma intimidade absurda, não acha?

 
“E a lua,
sob seu capuz escuro,
cai do céu a cada noite,
com sua boca vermelha e faminta
para sugar minhas cicatrizes.”
 

Seguimos, então, ao clímax. A lua encapuzada, a qual imediatamente visualizamos como a lua negra: símbolo do inatingível, da “hiperlucidez dolorosa, de tão intensa. (…) A Lua Negra encarna a solidão vertiginosa, o Vazio absoluto, que é senão o Cheio por Densidade”. Vemos aqui o extermínio de todas as paixões e energias, ao cair da noite. É durante o aparecer da Lua que os sapatos conversam e que os pensamentos ganham vida. Em meio a escuridão física e psicológica que se tem as mais honestas conversas, quando as feridas são remendadas e corpo e alma se reprogramam para levantar-se para a próxima batalha da manhã. É nesse mais tenro e recôndito momento que noite encontra os sonhos, convertendo-os em pesadelos, e são sugados pelo poder absoluto do próprio eu-lírico.

 

REFERÊNCIAS

Biografia de Anne: https://www.deathreference.com/Py-Se/Sexton-Anne.html
Poema no original (inglês): https://www.poemhunter.com/poem/as-it-was-written/
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário dos Símbolos. 28ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.