ANÁLISE #29: FATO OU FICÇÃO?

ANÁLISE: A Irmandade Perdida
AUTOR: Anne Fortier

SINOPSE: Diana Morgan é professora da renomada Universidade de Oxford. Especialista em mitologia grega, tem verdadeira obsessão pelo assunto desde a infância, quando sua excêntrica avó alegou ser uma amazona – e desapareceu sem deixar vestígios.
No mundo acadêmico, a fixação de Diana pelas amazonas é motivo de piada, porém ela acaba recebendo uma oferta irrecusável de uma misteriosa instituição. Financiada pela Fundação Skolsky, a pesquisadora viaja para o norte da África, onde conhece Nick Barrán, um homem enigmático que a guia até um templo recém-encontrado, encoberto há 3 mil anos pela areia do deserto.
Com a ajuda de um caderno deixado pela avó, Diana começa a decifrar as estranhas inscrições registradas no templo e logo encontra o nome de Mirina, a primeira rainha amazona. Na Idade do Bronze, ela atravessou o Mediterrâneo em uma tentativa heroica de libertar suas irmãs, sequestradas por piratas gregos.
Seguindo os rastros dessas guerreiras, Diana e Nick se lançam em uma jornada em busca da verdade por trás do mito – algo capaz de mudar suas vidas, mas também de despertar a ganância de colecionadores de arte dispostos a tudo para pôr as mãos no lendário Tesouro das Amazonas.
Entrelaçando passado e presente e percorrendo Inglaterra, Argélia, Grécia e as ruínas de Troia, A irmandade perdida é uma aventura apaixonante sobre duas mulheres separadas por milênios, mas com uma luta em comum: manter vivas as amazonas e preservar seu legado para a humanidade.

 

Quem nunca ouviu a frase “a Grécia é o berço da civilização ocidental”? Essa realidade é difundida por todos os cantos, justamente pelo modo de filosofar e pensar o passado, ao menos, após Heródoto – o conhecido pai da historiografia. Contudo, ser grego ou parecer grego pode ser muito mais do que imaginamos a priori, até porque seu corpus filosófico, mitológico e histórico é bem vasto.

Anne Fortier, autora de A irmandade perdida, escreveu uma narrativa focada nas amazonas, personagens lendárias e muito conhecidas da mitologia helênica. Assim, se você já ouviu falar da Diana ou da Mulher Maravilha, claramente já tem um pedaço dessa trama que se desenrolou bem na sua frente, como um papiro.

Amazona, de acordo com o Houaiss e até mesmo na perspectiva de alguns teóricos, possui uma etimologia incerta. Isto se deve ao fato de existir mais de uma possibilidade de porquê o nome delas é esse.

A primeira possibilidade provem do grego, seria o prefixo de negação a somado a mazon, ou seja, “seio”; assim, amazona seria aquela que é desprovida de seio. Dentro do contexto da lenda, faz muito sentido, já que se pressupõem que as amazonas retiravam o seu seio para melhor manejar o arco (o que, no final das contas, claramente não faz sentido). A segunda possibilidade, também muito difundida, relacionar-se-ia com a sua posição guerreira. No vocábulo iraniano, existe hamazan, que significa “aquele que luta junto”.

Ambas as ideias são muito congruentes e bem trabalhadas por Fortier que, no decorrer da sua narrativa, traz muitas informações verdadeiras e conhecidas pelos teóricos da área, como a localização de Troia, quem a descobriu, os possíveis lugares das amazonas no passado, bem como a aparição de diversos personagens míticos, lendários e importantes da narrativa da Hélade. Contudo, nem tudo é realidade, algumas partes da trama soam inverossímeis e outras são artifícios muito bem elaborados pela a autora e que fazem até bastante sentido, como a predileção dela quanto a Idade das Trevas da Antiguidade, na qual o mundo Antigo perdeu todas as suas informações e sua “civilização” para um terremoto, muito embora existam três teorias quanto a isso.

Outros artifícios utilizados por ela, no decorrer historicizante, é a presença de Páris ou Alexandre. Na Ilíada, por exemplo, Páris é basicamente a escória de Troia e trai a hospitalidade espartana por raptar Helena (embora seja ambíguo e envolva o mito do pomo de ouro, em que Zeus decide que Páris irá escolher a mais bela entre Afrodite, Athena e Hera. O humano decide por Afrodite, a qual lhe concede a mulher mais bela – nessa época, tal mulher já estava muito bem casada com Menelau). Contudo, dentro de A irmandade perdida, Páris não é um homem fraco e que foge da batalha, na verdade, ele é basicamente Heitor.

Heitor, para quem não sabe, é o herói troiano – e na minha concepção, o melhor personagem na Ilíada –, sendo o melhor irmão, filho e marido de toda a cidadela. Só que Fortier não apresenta Heitor e nem expande a guerra, na verdade, ela simplifica todos os acontecimentos de maneira muito plausível – em algumas partes, em outras não – em que tudo é decidido na luta entre Menelau e Páris.

Os gregos, ao contrário da Ilíada, são apresentados de maneira vilanesca e sem atributos positivos, um exagero por parte da autora, já que Homero não renega nem um pouco a brutalidade grega e pontua suas maiores atrocidades, lembrando também as suas qualidades. Assim, dentro da narrativa de Fortier, Heitor não existe e Aquiles – protagonista com sua ira – simplesmente é mencionado como um pirata sem importância para o desenrolar dos fatos da guerra. Outros personagens, como Hércules e Teseu também marcam certa presença, já que Hipólita e Pentesileia, filhas de Otrera, aparecem no mesmo contexto. Contudo, essa temporalidade marcada não faz muito sentido, já que Hércules é uma figura muito mais antiga do que as demais de Troia.

Helena, por sua vez, é apenas uma menina prometida a Menelau e não é o interesse amoroso do personagem honroso que se torna Páris. O seu par romântico, na narrativa é Mirina, a rainha das Amazonas. Assim, estando todas as personagens femininas e conhecidas das Amazonas ao mesmo tempo – por uma predileção da autora e ênfase em relação a elas – há uma miscigenação temporal de diversas lendas e mitos gregos, o que tira algumas possibilidades históricas e amarras que ela poderia ter feito. Entretanto, é possível compreender suas motivações.

As amazonas são personagens multifacetadas, provindas de diferentes ambientes, com muitas cores e origens (embora não apareça no livro a sua relação com Harmonia e Ares): o que é positivo e interessante, fazendo com que Fortier conecte as culturas da Antiguidade. Esse detalhe, ao meu ver, não é só legal, mas também plausível, já que a Antiguidade, em si, era globalizada. Muito mais do que supomos.

REFERÊNCIA

FORTIER, Anne. A irmandade perdida. Tradução de Fernanda Abreu. 1ª ed. São Paulo: Arqueiro, 2015. 

HOMERO, Ilíada. Tradução e prefácio de Frederico Lourenço; introdução e apêndices de Peter Jones; introdução à edição de 1950 de E. V. Rieu. 1ª ed. São Paulo: Penguin Classics – Companhia das Letras, 2013.

HOUAISS, A. e VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Elaborado no Instituto Antonio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

KURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Biblioteca do Exilado. 8ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.