ANÁLISE: 1984
AUTOR: George OrwellSINOPSE: Winston, herói de 1984, último romance de George Orwell, vive aprisionado na engrenagem totalitária de uma sociedade completamente dominada pelo Estado, onde tudo é feito coletivamente, mas cada qual vive sozinho. Ninguém escapa à vigilância do Grande Irmão, a mais famosa personificação literária de um poder cínico e cruel ao infinito, além de vazio de sentido histórico. De fato, a ideologia do Partido dominante em Oceânia não visa nada de coisa alguma para ninguém, no presente ou no futuro. O’Brien, hierarca do Partido, é quem explica a Winston que “só nos interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade: só o poder pelo poder, poder puro”.
Existem muitas ideias que podem ser trabalhadas em 1984, como os jogos políticos, as ideias apresentadas pelo autor em relação ao cenário atual e passado, a sua atemporalidade, as relações humanas e de poder, além da própria ideia de controle do Partido. Contudo, acredito que há algo na obra que fala um pouco de tudo e explica muito como o pessimismo de Orwell é tão plausível.
A Novilíngua – traduzido na nova edição como Novafala – é a característica, ao meu ver, mais essencial da obra, do controle do Partido. É ela que toma para si a responsabilidade de fazer absolutamente tudo ter muito sentido e não ser somente um exagero do autor.
Nós nos expressamos através das palavras, da língua. Isso é óbvio para todos, mas, às vezes, a obviedade é tão óbvia que se torna esquecida. Orwell, no decorrer da história, deixa claro que todo ano, em todos os idiomas, mais palavras são inventadas, sejam novos radicais, justaposições ou aglutinações. Aqui, não importa muito como essas palavras surgem, o que importa é o fato de elas surgirem. Elas surgem pela necessidade da comunicação, da expressão da ideia e do pensamento – todos em progressão, evolução.
Para Saussure, a língua é um sistema de comunicação utilizado em uma comunidade. Esse sistema, contudo, é vital para a própria sociedade, já que é o intermediário entre a massa amorfa que é o pensamento e a não-significação dos sons (para os gregos, por exemplo, aqueles que não falavam grego eram bárbaros, ou seja, aqueles que diziam um baba, sons sem sentido). Para unir o som e o pensamento, as palavras – a língua, melhor dizendo – é essencial, porque é através dela que expressamos os novos conceitos, os novos ideais, as progressões de ideias. Literalmente.
No entanto, e se a língua é podada? E se a palavra deixa de ter o sentido desejado e você não tem como falar o que você quer dizer? Quantas vezes você já se pegou sem saber o que falar e, no fim, não disse nada porque não encontrou as palavras certas?
A ideia do Partido é inibir a fala e, consequentemente, inibir o pensamento. Como você vai saber a noção de liberdade se você desconhece a palavra e o conceito liberdade? Ou amor? Ou ódio? Ou Deus? A palavra, nada mais é do que a materialização da ideia, sem a materialização, aos poucos, o conceito se perde e, por fim, a própria ideia nos abandona.
A Novafala é uma proposta de Orwell muito bem pensada e encaixada, posto que é a perda de palavras para fazer sentidos serem perdidos, gerando manipulação da massa e controle absoluto além do visível, mas no inconsciente. Além disso, é perceptível o domínio linguístico do autor na parte final do livro e nas explicações que vão surgindo no decorrer da sua obra, em que palavras, como livre, ganham somente um sentido simples e espacial; unido a um prefixo, uma pessoa que existe vira uma despessoa, o que significa dizer que ela não existe mais, trazendo a ideia das raízes históricas das palavras, mas privando-as de seus múltiplos sentidos.
A simplificação da língua, dessa forma, significa a simplificação do pensamento, justamente porque ideia e materialização não se desassociam. Com isso, não há sequer maneira de comunicar sua rebeldia, uma vez que você não pensa em por qual razão deve fazê-lo.
Essa técnica, inclusive, não é uma técnica inventada por Orwell, mas é um modelo pregado por muitos países que foram colonizadores. Por exemplo, no Brasil, houve uma predominância de uma massa popular muito maior do que a portuguesa, porém, falamos português. Por quê? O português, no Brasil, por mais diferente que seja de Portugal (e isso tem uma explicação histórica), ainda é português, utilizando expressões e vocábulos dessa língua, isto se deve ao fato de que os portugueses queriam dominar os índios, dominar os escravos negros e fizeram isso através da língua.
Os escravos que iam para os engenhos eram de tribos diferentes, falantes de idiomas não-iguais, assim, só podiam se comunicar através da língua do colonizador. Essa língua, no decorrer da dominação, foi uma das ferramentas da própria dominação, uma dominação presente até hoje e que influencia no racismo, machismo etc.
Embora seja uma maneira diferente de dominar, o princípio básico é o mesmo: limitar o indivíduo a maneira que o dominador quer que se expresse, quer que fale, quer que se comunique. Assim, conhecendo as palavras e sabendo do poder delas, todas as culturas dominadoras tenderam a reforçar os seus vocábulos em cima daqueles dominados, fazendo-os exprimir e, principalmente, pensar como o colonizador (o que gerava certo tipo de adoração).
Entretanto, tal como ocorre na obra de Orwell, essa dominação pode acabar sendo ineficaz, justamente porque, nos lugares em que se há mais desleixo da vigia, mais desleixo da consideração, é que o dominado pode finalmente se rebelar contra o dominador.
A língua, nesses casos, altera-se. De novo, pensa-se. O duplipensar se perde e você não é mais contraditório, porque encontra as palavras certas.
REFERÊNCIA
ORWELL, George. 1984. Tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn; apresentação e organização de Marcelo Pen. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. 26 ed. São Paulo: Cultrix, 2004.
Viciada em livros, fanática por animes e escandalosa assistindo filmes.