ANÁLISE: Cem anos de solidão
AUTOR: Gabriel García MárquezSINOPSE: O autor narra a história dos Buendía – a estirpe de solitários para a qual não será dada “uma segunda oportunidade sobre a terra” – e apresenta o universo da fictícia Macondo, onde se passa o romance. É lá que o leitor pode acompanhar as diversas gerações dessa família, assim como a ascensão e a queda do vilarejo.
É como se o mundo estivesse dando voltas
O pensamento de Úrsula Buendía, matriarca da família que acompanhamos em Cem anos de solidão, demonstra efetivamente como o tempo se encaminha dentro da obra de García Márquez. A sua ideia é de que todos os fatos transcorridos parecem repetições do passado, imutáveis tais como os nomes que são colocados nas crianças após os nascimentos delas.
Contudo, a ideia de pensamento cíclico não está somente nas confabulações da primeira mãe dos Buendía em Macondo, ela também é encontrada dentro da memória popular e da própria narrativa.
Para falar sobre essa concepção, primeiro precisamos compreender a diferença entre tempo cíclico e o tempo linear, este último é aquele que utilizamos e conhecemos na modernidade, muito embora existam povos que não vejam nem o tempo como cíclico e nem como linear, mas isso já é outra história.
O tempo cíclico é uma noção provinda dos povos da antiguidade, na ideologia grega idealizada a partir da concepção do “eterno retorno”, ou seja, tudo que passou, passará de novo, deixará de passar em um momento e voltará mais uma vez, num processo contínuo, exatamente como um círculo que se fecha em si mesmo. A lógica segue um padrão semelhante em muitas culturas, inclusive, de matrizes africanas, sendo, como aponta Mircea Eliade, praticada a partir de rituais periódicos, solstícios, entre tantos outros ritos conhecidos ou não.
Para deixar mais claro para quem desconhece a cultura grega, imaginem um lápis e um papel. Conseguiram? Nele, desenhe mentalmente uma bola. Depois, desenhe uma bola exatamente em cima dessa outra bola, às vezes, a curva vai sair um pouco da linha, mas tudo bem; em seguida, repita o processo e faça isso continuamente. O tempo cíclico é esse tempo que fica repetindo os fatos transcorridos – não exatamente iguais, embora sejam semelhantes –, como você faz quando desenha a bola de novo e de novo. Às vezes, sai idêntico. Às vezes, sai um pouco diferente, mas ainda é uma bola.
Nesse tempo, existe uma ausência de valor de temporalidade, porque tudo o que passou vai passar de novo, o maior exemplo que encontramos, como já citei, são os ritos. Todas as culturas de tempo cíclico se constroem em cima de ritos, porque o rito nada mais é do que trazer o passado de volta a partir da narração ou de algum evento comum daquela população. Embora nós percebamos, nós ainda possuímos em nossa cultura alguns aspectos desse tempo circular, por exemplo, o Natal, o qual reproduzimos todo ano. Ele se repete. Como a Páscoa, o carnaval e diversos outros eventos que nos fazem rememorar alguma concepção sagrada que, infelizmente em nosso consumismo, perdeu-se.
Contudo, ainda é a herança desse tempo, o qual se fundiu a conceção linear na Idade Média, assim, compondo duas visões a respeito da temporalidade de uma vez.
Então, o segundo, o tempo linear, surgiu de um rompimento no terceiro século, a partir do pensamento judaico cristão aliado ao homem moderno que desejava ser e criar a história. A ideia desse nada mais é do que progresso.
Comecemos com a questão religiosa. Na concepção bíblica, o homem alcançará o paraíso, nesse interim, existe um juízo de valor quando intuímos que haverá um lugar melhor do que o atual, ou seja, existirá uma jornada pela qual você deverá passar e terminar para chegar ao paraíso.
Outro fato interessante e que influencia essa perspectiva a respeito da relação bíblica e do tempo linear é o juízo final. Enquanto encontramos na mitologia nórdica, um final que se torna um novo início após o Ragnarok, quando dois humanos irão repovoar a terra, a ideia apocalíptica religiosa cristã é diferente: os mortos voltarão e todos serão julgados pela última vez. Dessa forma, o tempo se tornou linear, porque existe um passado, um presente e um futuro a que se guiar, os quais rumam diretamente para um progresso de solução, seja para qual lado você for depois desse juízo final. Na contemporaneidade, já encontramos a concepção de progresso materialista, dizendo-nos que quanto mais avançarmos com o tempo, mais nos saciaremos de valores materiais.
Mesmo indo de encontro ao pensamento católico, isso só demonstra como fomos nos desenvolvendo em nosso consumismo desenfreado, mas isso é texto para outro momento.
O progresso se faz na linearidade, porém, o que encontramos em Cem anos de solidão não é progresso, mas decadência; o que rompe brilhantemente com a primeira função do tempo linear dentro da narrativa.
Entendendo as concepções de tempo cíclico e linear, entenderemos como funciona na obra de Márquez e por qual motivo eu defino como sendo uma obra de tempo cíclico, mesmo que possua aspectos de tempo linear. O primeiro ponto para essa argumentação já foi ressaltado, é que, para além da solidão dos Buendía, a própria Macondo entra em colapso e degradação, fazendo com que estivesse não em um estado progressista, mas voltando, aos poucos, para suas raízes primevas de terra de ninguém.
Outro ponto para minha argumentação é a ausência de temporalidade, pois sabemos que o tempo passa, mas nenhum de nós tem certeza de quanto passa, pois todos os personagens que são citados pela quantidade de tempo que viveram já perderam as contas. Logo, o tempo não tem um valor essencial para os personagens, ele coexiste sim, em alguns pontos da narrativa que situam o leitor, como “choveu por quatro anos, onze meses e dois dias”.
Sendo assim, os personagens não parecem cientes dessa mudança temporal, mas sim, nós, já encarnados e cientes de que Cem anos de solidão é não somente uma reflexão da ditadura e da América Latina, mas uma narrativa que possui muitos pontos em comum e paralelos com a Bíblia, desde o êxodo até as pragas e o dilúvio.
García Márquez também usa os elementos fantásticos em sua trama e faz com que se tornem palpáveis, além disso, também rememora constantemente essas passagens. Todos esses elementos, tal como Remédios voando, são relembrados constantemente como se fizessem invocações ao contarem suas histórias; símbolo também do tempo sagrado, como menciona Eliade, ou, como já conhecemos no texto, cíclico.
Entretanto, todo o texto nada mais é do que um pergaminho, pertencente ao personagem Melquíades, o qual irá narrar os fatos transcorridos durante toda aquela família, do êxodo para Macondo até o final da linhagem dos Buendía. Logo, podemos dizer que a narrativa trabalha passado, presente e futuro.
Mas a forma de narrar de Márquez não é tão simplória, diversas vezes, no decorrer da leitura, se não prestar atenção, você poderá confundir a ordem dos fatos, isso porque o autor conta a história pelo passado-futuro e depois pela memória, começa sem começar do começo – exatamente assim, sem tirar e nem pôr.
Para exemplificar, recorrerei ao princípio. A primeira linha já começa nos dizendo que coronel Aureliano Buendía está em frente ao pelotão de fuzilamento e está se recordando de uma vivência que teve com seu pai. Então, a narrativa se emaranha e vemos os primeiros dias de Macondo, depois voltamos para o futuro e, em seguida, para o passado. E, no final das contas, nós vamos montando em nossa mente o que é passado, presente e futuro e não, o texto, porque somos nós que pensamos linearmente e precisamos seguir essa linearidade.
Pode soar confuso, mas é assim que funcionamos, no entanto, o texto não segue um padrão contínuo e linear certeiro, ele se embola dentro de si mesmo, o que é uma característica fundamental do tempo cíclico e dessa ausência de valor temporal que é tão essencial para o leitor.
O que o texto faz é nos demonstrar uma mistura entre narrativa e memória que faz o tempo. Inclusive, é difícil confiar cegamente na memória a partir da própria perspectiva de Márquez, que dizia:
O problema de escrever as memórias é que quando somos jovens não temos muito para lembrar; e depois que envelhecemos não lembramos de quase nada.
Não lembramos quase nada, mas lembraremos se rememorarmos constantemente, como em um rito. Além disso, ao realizarmos o rito, nós reviveremos aquele tempo e essa é a concepção sagrada desses rituais mesmo nas culturas arcaicas. O que García Márquez traz é essa essência na repetição exaustiva da essência dos Buendía a partir dos seus nomes e também de suas histórias até o final.
Outra questão interessante e que me faz rememorar essa ideia mítica e ritualística é a escrita usada pelo autor para simbolizar o sagrado da construção do texto: todo o pergaminho estava escrito em sânscrito. Para quem não conhece, além de existirem diversos alfabetos sânscritos, a principal delas o devanagari (que significa “a escrita da cidade dos deuses”), e mais de vinte declinações – para o tormento de quem quiser aprender –, é uma escrita sagrada, justamente porque é o idioma das escrituras clássicas.
Ou seja, Cem anos de solidão não se relaciona somente em parábolas com a Bíblia, mas, por si só, ganha um tom religioso e que, ao ser lido e relido pelo leitor, embora não tenha a mesma força que os rituais orais, renova o texto e faz com que ele seja, de novo, (re)vivido, trazendo, dessa maneira, a própria concepção de rito de forma muito mais profunda do que aparenta a priori.
Contudo, não podemos deixar de lado a própria repetição dentro da família dos Buendía que dá ao leitor a força maior para pensar o pensamento cíclico. Os nomes se repetem constantemente, temos Aurelianos e José Arcádios o tempo inteiro, e a própria personalidade dos personagens se assemelha tanto quanto a sua aparência física. Os Arcádios são trabalhadores, extrovertidos e muito impulsivos quando desejam fazer algo; enquanto, por sua vez, os Aurelianos nascem com os olhos abertos, são, ao contrário, pacatos, estudiosos e introvertidos.
Os nomes repetidos por si só já dão a impressão e a sensação de repetição, inclusive, os nomes femininos, como Remédios, Amaranta e Úrsula. Entretanto, não são os nomes que fazem com que essa força seja maior, mas as próprias personagens que, respectivamente, morrem cedo/ ascendem aos céus, relacionam-se com seus sobrinhos e revigoram a casa.
Embora sejamos capazes de ver a linearidade em Cem anos de solidão, toda a sua concepção é cíclica, porque os homens cometem os mesmos erros, apagando os mais graves da memória e deixando ser enganados de novo e de novo.
Serem explorados por colonizadores e, depois, ditadores. Márquez faz uma crítica a solidão, mas também a memória e ao tempo perdido.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Silvia M. S. Quando o tempo se torna linear. São Paulo: Perspectiva, 1986/87. p. 161-168.
ELIADE, Mircea. Sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LEACH, E. R. Dois ensaios a respeito da representação simbólica do tempo. In: Repensando a antropologia. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 191-209.
MÁRQUEZ, Gabriel García, Cem anos de Solidão. Tradução de Eric Nepomuceno. 82ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2014.
Viciada em livros, fanática por animes e escandalosa assistindo filmes.