ANÁLISE #26: COMPARANDO OS CONTOS

 

ANÁLISE: A Bela e a Fera
AUTOR: Jeanne-Marie Leprince de Beaumont; Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve

SINOPSE: A versão clássica, escrita por Madame de Beaumont em 1756, vem embalando gerações e inspirou quase todos os filmes, peças, composições e adaptações que hoje conhecemos. A versão original, que Madame de Villeneuve publicara em 1740, é de uma riqueza espantosa, que entre outras coisas traz as histórias pregressas da Fera e da Bela e dá voz ao monstro para que ele mesmo narre seu destino.

Uma rosa pode mudar tudo, ao menos, foi assim que começou a mudança na vida da Fera, um dos protagonistas da história A Bela e a Fera. A história original foi escrita em 1740, por Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, e, em 1756, uma autora muito famosa da época, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, adaptou a versão de Villeneuve.

Embora seja uma adaptação da primeira versão criada por Villeneuve, a versão de Beaumont ficou mais conhecida, visto que era uma autora e educadora muito famosa em sua época e que chamava bastante atenção até mesmo da nobreza e dos intelectuais de seu tempo.

As duas histórias possuem muitas semelhanças e começo equivalente, porém, as críticas sociais de uma e de outra podem ser vistas de formas muito díspares entre si. Enquanto Villeneuve parece criticar as relações matrimoniais – embora eu veja mais as relações ambíguas/duplas que temos no cotidiano com mais ênfase –, a versão de Beaumont já busca incentivar o público feminino a ser ideal, seguindo os princípios de sua religião, já que fora educada em uma escola eclesiástica.

No conto de 1756, escrito por Beaumont, Bela é uma personagem virtuosa – em todos os sentidos que essa palavra pode adquirir – e de uma beleza única. A todo momento, a personagem é exaltada por sua educação, sua bondade e generosidade, tanto é que todos os homens, mesmo sem a família de Bela ter qualquer posse, continuavam a desejá-la imensamente, ao contrário de suas irmãs, que são rejeitadas por todos os conhecidos, amigos e pretendentes que possuíam.

Na versão original, escrita por Villeneuve, essa ideia não se altera, porém, não é enfatizada em nenhum momento. O único ponto a ser enfatizado é a inveja de suas irmãs, que, no final da história, são transformadas em pedra pela Fada e só sairiam daquele tormento quando se arrependessem verdadeiramente de seus sentimentos negativos e até das artimanhas que tramaram contra a protagonista.

Se não é a respeito das etiquetas e formalidades de uma jovem, qual é a ênfase de Villeneuve? Pois bem, a ênfase, a meu ver, se conecta a como as relações se dão no cotidiano, sobre o que nós nos apresentamos para o mundo e sobre o que verdadeiramente somos, tanto é que a história possui uma quantidade absurda de oposições entre os personagens principais enquanto a Fera está amaldiçoada; e também a respeito das relações hierárquicas e preconceituosas, essa ideia surge pela questão que a Fada faz para a mãe do príncipe, se fazia diferença a Bela ser alguém de origem nobre ou não, pois foi quem quebrara o encanto jogado pela outra fada.

Para a mãe do príncipe faz toda a diferença, em contrapartida, o rapaz ama tanto a sua pretendente que implora para voltar a ser Fera. Na história de Beaumont, em nenhum momento há esse questionamento.

Entretanto, alguns especialistas comentam que a versão de Villeneuve trabalhava e critica as relações matrimoniais por conta de sua própria vida conturbada por um casamento infeliz, visto que a cada etapa, a Bela vive a clausura entre o que as meninas sonham sobre um casamento ideal e o que de fato encontram, encenados, respectivamente, no sonho e na realidade.

A ideia é muito interessante e possui uma leitura bastante plausível se você conhece a vida da autora a fundo, porém, sem excluir essa crítica social do matrimônio, há muito mais no texto elaborado por Villeneuve do que somente isso. Parece-me que a história não critica somente uma diretriz social, mas todas as diretrizes sociais que são impostas, seja a hierarquia nobre, o casamento e todo um contexto social que preza suas posses ao indivíduo.

Parte dessa crítica consta em Beaumont, mas não parece ser o cerne do que é trazido. Obviamente, a menção da inveja, da exclusão social e do próprio preconceito – já adaptados de Villeneuve – traz a ideia da crítica às diretrizes sociais, porém não a enfatizam, dando espaço a como uma jovem deve se comportar diante do mundo.

Outro aspecto interessante e que precisa ser mencionado é como a história continua e como possui diversos pontos que são ignorados por Beaumont. Villeneuve cria uma narrativa que trabalha todo o mundo das fadas e a própria hierarquia a que elas subjazem, pois mesmo que façam o mal, se elas são mais velhas, devem ser respeitadas. Uma fada não pode ir contra a outra em nenhum momento, pois cada uma delas possui autonomia para suas ações, caso isso não afete a ordem das fadas.

A história narra como a mãe de Bela, fada e irmã da Fada que auxilia o príncipe, foi contra os princípios das fadas por conta de seu amor pelo pai da protagonista. Essa ideia é completamente excluída nos demais contos, principalmente, o fato de que Bela, na verdade, era mesmo uma princesa, o que nos recorda a origem dos contos populares e de fadas mais antigos.     

Em diversos momentos, enquanto a narrativa continua o seu curso, podemos vislumbrar toda uma história por trás. Por exemplo, como o príncipe foi transformado em Fera, já que ele não era alguém vaidoso ou malévolo, mas sim a Fada que cuidou dele por toda a vida. Os motivos que levaram a segunda Fada a ajudá-lo, levando em conta como o universo das Fadas é explorado na narrativa e o desejo próprio de cada uma delas para fazerem o que elas desejam se não for contra a ordem que seguem. A verdadeira história sobre o nascimento de Bela e como ela para nas mãos do comerciante que considera o seu pai, causando nas suas irmãs ainda mais inveja do que tinham; entre outros pequenos pontos que, assustadoramente, interligam-se completamente.

Um ponto a ser enfatizado, ainda mais para uma leitura contemporânea do conto, é que não há sororidade. Obviamente, é um conceito da época, porém deve ser ressaltado em que nenhuma das duas versões há realmente uma ligação feminina forte e empoderada porque era comum na época a rivalidade entre mulheres.

Mas a que se deve isso? Dentro das duas narrativas podemos perceber a necessidade de sustento relacionada ao homem tanto quanto o status. Uma mulher dependia financeiramente de seu parceiro, logo, as mulheres disputavam os homens uma com as outras, porque queriam ter mais, viver bem em todos os sentidos.

Contudo, não se deve criticar as autoras por essa falta de sororidade comum da época, mas refletir e perceber a nossa evolução de questionarmos a falta dela. Na adaptação cinematográfica da Disney, em 1991, continuamos a não vislumbrar essa sororidade, pois temos as três moças – que representam as três irmãs – apaixonadas por Gaston e repudiando as atitudes de Bela. Na nova adaptação, em 2017, também produzida pela Disney, podemos ver que as personagens continuam a agir de forma equivalente, porém, em contrapartida, temos personagens que valorizam essa diferença entre a personagem Bela e a as demais moças do vilarejo.

 Em algum momento, nós poderemos ver novas adaptações que ponham em pauta essa questão e, quiçá, modifiquem-na. De passo em passo, todas podemos ser Bela – empoderadas sem precisarmos contrastar com nenhuma personagem para isso, pelo contrário, buscando trazê-la para esse mundo em que nós somos o melhor que podemos ser, sem desejarmos ser outra pessoa para tal.

 

REFERÊNCIAS

BEAUMONT, Madame de; VILLENEUVE, Madame de. A Bela e a Fera. Tradução de André Telles; apresentação de Rodrigo Lacerda; ilustração de Walter Crane e outros. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.