ANÁLISE #25: O PATÉTICO E O EXTRAORDINÁRIO

 

ANÁLISE: Peter Pan
AUTOR: J. M. Barrie

SINOPSE: “Todas as crianças crescem, menos uma.” Como pó de fada, há cem anos estas palavras transportam os leitores para um mundo mágico, povoado pela família Darling e pelos habitantes da Terra do Nunca – Peter Pan, os meninos perdidos, Sininho, crocodilos, sereias, o Capitão Gancho e seus piratas…

Existe na infância algo extraordinário que, se nos faltarem palavras para explicar, existirá um ato que definirá tudo: o riso ou o sorriso, ou a falta de boletos ou das responsabilidades. Geralmente, definimos como maravilhoso, quando crianças, características muito diferentes quando adultos, porque, ao crescermos, não somente a nossa mente muda como toda a nossa rotina e, para nós, que estamos saturados e fatigados, o mais desgastante são as responsabilidades que adquirimos com o decorrer da idade.

Essas responsabilidades são uma parcela do que nos diferencia e muito das crianças, porque, acima de tudo, o que possuímos é uma moralidade de acordo com o lugar em que vivemos. A criança possui uma honestidade sem igual, se está com fome e alguém oferece um biscoito, aceita, sem nem pestanejar, porque – para ela – aquele oferecimento é genuíno e recusar por cortesia está fora de cogitação.

Em Peter Pan, encontramos os aspectos mais intrínsecos da criança valorizados e os dos adultos, ridicularizados. Por exemplo, se Peter deseja algo, simplesmente, ele faz. O personagem não possui uma moral que o diga ou dite para ele um bom costume, muito ao contrário das outras figuras masculinas da trama, como o sr. Darling e o próprio Capitão Gancho.

Um exemplo desse comportamento específico de adultos, constantemente ridicularizado, é como nos importamos com as opiniões alheias. O senhor Darling se importa muito com o que os outros pensam de sua família, então, valoriza muito mais uma concepção estética, ou seja, de aparência do que de fato o que importa, por conta disso, ele se torna – para as crianças e aos leitores – um personagem com um senso de ridículo afetado e de uma percepção nada apurada. Ele se incomoda de não pedirem sua permissão para a estadia dos Meninos Perdidos e culpa constantemente Naná, a babá cachorro das crianças, simplesmente por ela ser um animal e não, um ser humano. As ações dele são sempre precipitadas e seu humor é de muito mal gosto, quando, em uma cena, coloca seu remédio na tigela da cadela ao invés de beber, como havia prometido ao seu filho. Ele pisca e ri, mas nenhum dos presentes – e isso, nós estamos incluídos – acham divertido.

Com o decorrer da trama, o personagem vai se tornando ainda mais afetado e mais ridículo. Ao perceber que as crianças não estão mais no quarto porque Naná foi mantida do lado de fora por culpa sua e de sua arrogância, ele se pune a estar constantemente na casinha de cachorro que pertence a babá. O fato de um homem permanecer em uma casinha de cachorro durante toda a trama é tão ridícula quanto a própria essência do personagem que, ainda que o tempo passe e as experiências sejam adquiridas, muda muito pouco, como se ele aprendesse, mas não fosse capaz de apreender a informação suficientemente.

Outro personagem na esfera do ridículo, ainda que seja bem mais interessante, é o vilão Capitão Gancho. Gancho tem sua rivalidade com Peter simplesmente porque o menino é arrogante e foge dos bons modos. Uma característica que temos muito pungente é o fato de que nos importamos demais com o que é bem visto ou malvisto na sociedade e de como devemos agir em dados momentos, sem nos preocuparmos se estamos sendo quem somos ou não, de novo, afetamo-nos muito mais com o que se aparenta do que com o que é.

Peter Pan não possui nenhuma moralidade, ou seja, nenhuma de nossas regras de etiqueta ou do que acreditamos ser correto ou não. Para ele, matar não é um problema e nem mesmo levar crianças de suas casas no meio da noite, porque isso não foi ensinado e, mesmo que fosse, o protagonista se esqueceria disso. No entanto, a sua forma de agir e a sua forma de ser incomoda todos aqueles que possuem moralidade, como Gancho, Wendy e a nós, leitores.

Contudo, é interessante perceber que Gancho também é colocado como um homem patético na obra, justamente porque a sua formalidade e os seus modos são exaltados mais do que o necessário, tanto que, no final, ao morrer, ele se vangloria como se tivesse vencido porque Peter Pan exibiu maus modos. A própria vida e a importância dela é reduzida diante do que acreditamos ser o correto de acordo com os nossos valores sociais, como a nossa moral é exaltada acima do que é natural ou como os bons modos são mais característicos do que respirar ou com o que vemos, tornando-se muito mais importante do que o que sentimos.

Eu acredito que essa, entre as múltiplas críticas desse livro, seja a mais interessante, visto que é possível perceber como nos encaixamos nesses estereótipos, mesmo que seja exagerado, é nitidamente algo pertencente a esfera adulta. Barrie, como uma manobra estética e literária, exagera propositalmente na característica desses personagens para percebermos a principal diferença entre nós e as crianças (além de deixarmos de sonhar com a Terra do Nunca, é claro): o que nos importa mais é algo que outros cultuam e nos fazem cultuar por estar englobados na mesma sociedade e não, nós mesmos ou o que sonhamos ou o que queremos, principalmente, o que sentimos em nossas relações.

Dessa forma, percebemos que o extraordinário na infância não é somente a falta de responsabilidades ou a de boletos como tantas vezes afirmamos quando lembramos da boa e velha infância, mas também o que somos e representamos para nós mesmos. Então, eu não consigo evitar de perguntar: seu eu-criança seria feliz com o que você se tornou hoje, ou você diria para ele que utopias não existem?

Barrie traz, em um livro infantil, uma crítica que aquelas crianças vão precisar quando crescerem, porque todos nós esquecemos – com o passar do tempo – o que é essencial e invisível aos olhos, como diz em O Pequeno Príncipe.

   

REFERÊNCIAS

BARRIE, J.M. Peter Pan. Apresentação Flávia Lins e Silva; tradução Júlia Romeu; notas Thiago Lins. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

SAINT-EXUPÉRY. O Pequeno Príncipe. 18ª edição. Rio de Janeiro: Casa dos Livros, 2013.