ANÁLISE #24: O “NENHURE” DOS TEMPOS

 

ANÁLISE: Primeiras Estórias

AUTOR: João Guimarães Rosa

SINOPSE: Estas ”Primeiras estórias” percorrem múltiplos temas, apresentando diversas situações, problemas e soluções, em vários tipos de conto: o fantástico, o psicológico, o autobiográfico, o anedótico, o satírico. Apesar dessa extrema diferenciação, as “estórias” reunidas por Guimarães Rosa nesse seu livro de estreia nas narrativas curtas apresentam uma unidade, desenrolando-se em sua grande maioria numa região não especificada, mas reconhecível como a das obras anteriores, embora o seu cenário seja apenas esboçado. Um mundo Guimarães Rosa, de geografia e linguagem mais expressivas que discursivas, em que a leitura se torna um caminhar por inesperadas terceiras margens.

Primeiras Estórias está situado em uma espécie de nenhum-lugar, onde ocorre o trânsito – tanto espacial quanto subjetivo e social – do mundo “arcaico” para o “moderno”. Fazendo uso, com certa liberdade, do conceito criado por Leyla Perrone-Moisés, o livro de Guimarães Rosa é, de certa forma, um “nenhure”, no sentido de que não é possível atribuir a ele um lugar físico ou metafísico específico, mas, também, não é possível dizê-lo “totalmente inventado ou completamente lembrado”. Isso porque os espaços apresentados por Rosa são vários – alguns recebem nomes, outros não. Há ainda um terceiro tipo que parece estar localizado, sobretudo, na subjetividade do narrador (como é o caso dos contos “Nenhum, Nenhuma” e “O Espelho”). Chama-se “nenhure”, aqui, a esse espaço que, por não se poder localizar, torna-se vários.

Esse “nenhure”, representado pela obra de Guimarães Rosa, “é o lugar do atraso e do progresso imbricados, do arcaico e do moderno enredados, onde o movimento do tempo e das mudanças históricas compõe as mais peculiares combinações”, como bem aponta Arrigucci Jr. Perceber esse imbricamento permite enxergar alguns dos aspectos que fazem com que, como disse Costa e Silva, “todas essas estórias”, contidas no livro, façam-se “de mergulho ou vôo” – pois Rosa é capaz de falar para sua época e para além dela.

Em “O Espelho”, por exemplo, somos apresentados a um homem que afirma ter vivido “uma experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições”. Mascarando, então, sua narração de discurso científico – próprio da Modernidade –, percebemos, no narrador (que depois se revela de origem interiorana), a presença de discursos que têm muito mais zonas de contato com o arcaico do que com o moderno. O próprio narratário, aliás, é uma dessas zonas: “Sou do interior, o senhor também, na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar um espelho às horas mais mortas da noite (…). Sou, porém, positivo, um racional (…)”.

“O Espelho” é um perfeito exemplo do que se falou ao início sobre o trânsito subjetivo, pois, nesse conto, encontramos um sujeito que, diante do espelho de um banheiro de edifício público – símbolos da Modernidade –, percebe-se fragmentado (há um primeiro eu, não visto, que não reconhece o segundo eu, visto no espelho). Às alterações do mundo, correspondem as alterações do sujeito, representadas, no conto, através da imagem do homem do interior que, agora na cidade, no moderno, não reconhece a si mesmo, sentindo necessidade de buscar o essencial em si, conflito que é, de diversas formas, atual. 

O trânsito espacial é outro que aparece marcado por esse já mencionado imbricamento. Em “As Margens da Alegria”, acompanhamos pelos olhos de uma criança essa mudança. Tendo viajado do interior para um local onde está se construindo uma cidade, o menino encontra-se hospedado em uma casa que não precisa bem os limites entre o arcaico e o moderno, a natureza e a civilização: “A morada era pequena, passava-se logo à cozinha, e ao que não era bem um quintal, antes breve clareira, das árvores que não podem entrar dentro de casa (…). Dali, podiam sair índios, a onça, leão, lobos, caçadores?”. A oportunidade de conhecer o novo, de “fugir para o espaço em branco”, no qual a civilização e suas relações se davam, é o que transforma o menino em Menino, mostrando que às transformações espaciais correspondem as sociais e, estas, às do sujeito – tudo orquestrado, embora nem sempre “concertado”.

O exemplo mais claro de transição social gerando uma peculiar combinação talvez seja o presente no conto “Famigerado”. Nele, o conflito silencioso, que se passa dentro da mente do médico, entre a sua própria figura e a do jagunço, contrapõe-se quase comicamente ao que acontece de fato ao longo da estória. Temendo a violência física que poderia sofrer, o médico recorre a um outro tipo de violência, marcadamente civilizatória: a da palavra. Temos, então, o conflito do letrado e do iletrado. Através da sua presença, fica evidente como as relações de poder tornam-se outras na modernidade. Detém o poder maior quem detém o conhecimento. O jagunço torna-se submisso à autoridade intelectual do médico, aceitando as suas explicações legitimadas pela sua posição de conhecedor: “Não há como que as grandezas machas de uma pessoa instruída!”. O médico, por sua vez, sabendo que não seria questionado, diz apenas o que o outro quer ouvir, negando-lhe a outra parte da informação. Mais uma vez, esse é um conflito de diversas formas atual.

Mas essa parece ser uma característica de Guimarães Rosa. De suas histórias, tão peculiarmente imbricadas, nascem conflitos que são locais e universais, mergulho e voo: O homem diante do espelho, dividido entre o velho e o novo, travestindo seu discurso para que ele adquira credibilidade científica; o menino, que se vê Menino diante de uma civilização que se abre; o médico, que por temer a violência física, lança mão na violência da palavra que é negada. Todos lugares antigos e atuais, marcados por trânsitos do Arcaico ao Moderno. Um “nenhure” de todos os tempos.

 

REFERÊNCIAS

ARRIGUCCI Júnior, Davi. O mundo misturado: romance e experiência em G uimarães
Rosa . Novos Estudos Cebrap, São Pau lo, n. 40, nov. 1994.

PERRONE-MOISÉS, L. Para trás da serra do mim. Scripta. Belo Horizonte, v. 6, n. 10, 2002.

ROSA, J. G. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.