ANÁLISE #22: O DILEMA DAS INTERROMPIDAS

 

ANÁLISE: Garota, Interrompida¹; O Dilema do Porco Espinho²
AUTORES: Susanna Kaysen; Leandro Karnal
 

SINOPSE¹: Quando a realidade torna-se brutal demais para uma garota de 18 anos, ela é hospitalizada. O ano é 1967 e a realidade é brutal para muitas pessoas. Mesmo assim poucas são consideradas loucas e trancadas por se recusarem a seguir padrões e encarar a realidade. Susanna Kaysen era uma delas. Sua lucidez e percepção do mundo à sua volta era algo que seus pais, amigos e professores não entendiam. E sua vida transformou-se ao colocar os pés pela primeira vez no hospital psiquiátrico McLean, onde, nos dois anos seguintes, Susanna precisou encontrar um novo foco, uma nova interpretação de mundo, um contato com ela mesma. Corpo e mente, em processo de busca, trancada com outras garotas de sua idade. Garotas marcadas pela sociedade, excluídas, consideradas insanas, doentes e descartadas logo no início da vida adulta. Polly, Georgina, Daisy e Lisa. Estão todas ali. O que é a sanidade?

SINOPSE²: O poeta Vinicius de Moraes cantava “que é melhor se sofrer junto, que viver feliz sozinho”. Será? Este é um dos fios da meada que o historiador Leandro Karnal, um dos intelectuais mais influentes do país, toma como mote neste livro. A partir de referências filosóficas ou religiosas, relacionadas a fatos históricos ou a romances, ele faz uma saborosa reflexão sobre a natureza de viver só – ainda que por pouco tempo.

Quem teria coragem de se queimar? De visitar o inverso da pele, de conviver com o inimigo que habita dentro de si mesmo? Polly, Cynthia, Daisy, Georgina, Lisa e Susanna.

Quando Susanna é levada contra sua vontade, ela passará pela mais intensa e terrível das jornadas do herói: a solidão. O mal contemporâneo, segundo Karnal em seu livro O Dilema do Porco Espinho, não me parece tão atual quando nos deparamos com o grupo de meninas do hospital psiquiátrico McLean em 1967.

“A visão sobre solitários quase nunca é boa. (…) A solidão é o vestíbulo da perda da razão, ou, talvez, o amplo salão vazio no qual a insanidade baila”. Com esse manto tecido por Leandro Karnal, Susanna se vestiu e bailou. Teve momentos de trevas, em que buscava se acostumar e se reconciliar com a ideia do autoaborto, dar fim à antiga insistência em sabotar seus próprios desejos e ideias positivas. Em que negou aos outros e a si mesma, e tal qual uma sádica, encontrava satisfação na dor, como uma forma de punição.

Susanna se sabotou porque gostaria de se livrar de um aspecto de sua personalidade, aquele que muitas pessoas buscam ignorar simplesmente por não sabermos lidar com ele. Você sabe do que eu estou falando? Quantos de nós já não saímos em busca de um labirinto sem saída ou de um abuso travestido de amor? Aquele perigo que fez seu coração parar de bater, aquele machucado que você vive tirando a casquinha? E, mesmo que em algum canto de nosso cérebro o alarme piscasse, consciente ou inconscientemente, retornávamos à fonte em busca de mais dor? Quão normal eu sou? Quanto afeto eu mereço?

 Li Garota Interrompida e O Dilema do Porco Espinho seguidos um do outro, em um momento de mudança radical da minha vida: o abandono da dependência emocional e a busca por força na solitude. Algo é muito bem pontuado por Karnal: “Fugir ou buscar o isolamento, encontrar ou perder o amor é o eixo definidor da própria cultura humana”. Que fique claro, Susanna busca (e, paradoxalmente, repele), no que se refere ao amor, prioritariamente, o amor próprio.

 

São mantras idiotas que existem dentro de um ciclo predeterminado: ‘Eu não presto, eu sou o Anjo da Morte, eu sou burra, eu não faço nada direito’. O primeiro pensamento já desencadeia o resto do circuito. É como gripe: primeiro uma dor de garganta e depois, inexoravelmente, o nariz entupido e a tosse.
Algum dia esses pensamentos devem ter significado alguma coisa. Devem ter significado o que afirmam. A repetição, porém, tirou-lhes o gume. Tornaram-se música de fundo, o pot-pourri Muzak do ódio que sentimos de nós mesmos.

 

Sua batalha é aquela que todos enfrentamos algum dia em nossas vidas se passamos tempo suficiente refletindo sobre quem somos nós no mundo e como nos relacionamos com os demais. A reclusão ao hospício solucionava a cobrança de uma sociedade pouco transigente que demanda que alcancemos a excelência dentro do prazo de validade, especialmente para mulheres na década de 60, época que os transtornos mentais eram frequentemente banalizados e tratados por vezes com violência e crueldade. Uma mulher recém-saída de uma instituição psiquiátrica? Que bobagem é essa?!

 

Algumas pessoas se assustam mais o que outras.
‘Você passou quase dois anos em um hospício! Por que diabos foi parar lá? Não acredito!’ Tradução: se você é louca, eu também sou; e, como não sou, deve ter havido algum equívoco. ‘Você passou quase dois anos em um hospício? Qual era o seu problema?’. Tradução: preciso saber dos detalhes da sua loucura para ter certeza de que não sou louco. ‘Você passou quase dois anos em um hospício? Hummm. E quando foi isso?’. Tradução: você ainda é contagiosa?

 

Susanna se sentia aliviada por estar afastada das cobranças e julgamentos, porém, colocava-se cara a cara com uma série de dilemas existenciais e com o desafio de enfrentar a fragilidade humana. Criamos deuses e bestas conforme nossa experiência de isolamento. Algumas das bestas a levaram a lugares escuros demais para se voltar sem sequelas. Precisou enfrentar o abandono familiar, pois seus pais não compreendiam o que se passava na mente dela; teve que conviver com sua melancolia, seus transtornos de personalidade e seu constante sentimento de que a vida que lhe pertencia não estava sob seu controle, além de, claro, a sensação de fracasso. O intimismo com o qual ela descreve essa tonelada de sentimentos remexeu em minha própria caminhada filosófica. Identificar-se am algum nível com a personagem significa também reconhecer que a linha entre a loucura e a normalidade é bastante tênue.

 Algumas das bestas da protagonista tinham formas horrendas e eram bastante reais, sendo a misoginia a maior delas. Quando Susanna obteve alta, um documento atestava “Posteriormente ‘casou-se e obteve um emprego de responsabilidade’”. As mulheres aceitas socialmente são bonitas, normais, prendadas, com ótimas notas na escola, virgens, recatadas e prontas para contraírem matrimônio. Ainda que Karnal descreva a antiguidade cristã, estendo esse pensamento: nos anos 60 se vivia numa época em que “o pensamento religioso tinha pavor da mulher, pois seu olhar, corpo e pensamentos eram invólucros condutores e catalisadores do pecado”. É impossível falar sobre ser mulher, de sua importância e sua liberdade (ou falta dela) sem mencionar a religião e suas conexões, uma vez que essa está intrinsecamente ligada aos conceitos sociais daquela época.

Infelizmente, ainda existem muitas pessoas exigindo esse perfil em pleno 2019, de forma que o livro e suas simbologias permanecem tão atuais quanto eram nos anos 60. Muitas seguem reprimidas e, com a ajuda do patriarcado e do ideal de amor romântico já tão difundido no passado, surge a ideia de que o cônjuge será aquele responsável pela nossa completude e motivo de existência, quando na verdade jogamos nas mãos de outra pessoa uma carga incontavelmente maior do que será capaz de cumprir.

Que fique claro que não estou dizendo que o problema de Susanna exclusivamente é falta ou excesso de amor. Ela possui um distúrbio que necessita de acompanhamento psicológico, e eu estou longe de ser psicóloga. Entretanto, é estranho perceber como esse conceito mobiliza o mundo. Um grande número de pessoas, em especial nós, mulheres, passamos o resto de nossas vidas em busca de outro alguém que nunca poderá oferecer uma metade que não lhe pertence, pois se encontra dentro de cada um. Conforme muito bem colocado em O Dilema do Porco Espinho:

 

(…) nascemos sós. Ao virmos ao mundo, rompemos nossa ligação com outro ser e passamos a vida sozinhos, atravessamos o rubicão, e a sorte está lançada para cada um de nós lidar com ela. Se por um lado enxergássemos essa condição basilar de solidão como uma maldição, não nos conformássemos com ela e tentássemos negá-la, nos tornaríamos setes inautênticos, seríamos estranhos a nós mesmos. Flutuaríamos ao redor de quem ou o que nos desse a ilusão de companhia, nos tornaríamos secundários em nossa própria existência. Por outro lado, se abraçássemos essa condição de solidão inata e essencial, seríamos autênticos e, portanto, livres. O preço da liberdade é a solidão com essência.

 

Cabe a você, cara leitora, buscar a parte que lhe falta. Rompemos as ligações que temos com aqueles que nos cercam, mas jamais com a outra metade que vive em você. Quão confortável você está consigo mesma? Quão interrompida você é pelo seu outro eu?

 

REFERÊNCIAS

KARNAL, Leandro. O Dilema do Porco Espinho: como encarar a solidão. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018.

KAYSEN, Susanna. Garota, Interrompida. Tradução de Márcia Serra. São Paulo: Editora Gente, 2013.