ANÁLISE: A Ilustre Casa de Ramires
AUTOR: Eça de Queirós
SINOPSE: Gonçalo Ramires é membro de uma dinastia decadente, mas orgulhosa do passado nobre. Como saída para um impasse financeiro, entrega-se a um empreendimento agrícola na África. Ao narrar essa transformação moral, Eça de Queirós tece uma mordaz crítica a Portugal, um país que cultua a família mas cujo sucesso depende da exploração colonial.
E no Verão vai o nosso Gonçalo escrever uma novelazinha sublime…
EÇA DE QUEIRÓS
João Gaspar Simões, em sua obra Eça de Queirós: A Obra e o Homem, afirma que, desde a crítica que Machado de Assis fez às personagens realistas/naturalistas de Eça, chamando-as títeres – simples marionetes sem vida ou profundidade, manipuladas de acordo com a ideia que se deseja ver demonstrada –, o autor português teve suas convicções a respeito de seu próprio fazer literário abaladas.
Isso, somado a outros fatores, como seus anos de vida diplomática em Cuba; a realização de seu primeiro e único casamento aos 41 anos; e a sua mudança para Paris, teria deslocado o foco de sua escrita da crítica ferrenha para o simbólico e o lírico. A essa altura, como diz Marise Hansen, parecia “que já o programa naturalista” já não atendia “às necessidades artísticas do escritor”. É nessa fase de novas convicções e fazeres que surge, em 1894, o romance A Ilustre Casa de Ramires, no qual “a crítica acirrada aos valores burgueses dá lugar à valorização do país, do interior, do povo português”, o que, no entanto, “não implica o abandono da perspectiva observadora e realista nem da ironia fina”.
Gonçalo Mendes Ramires, personagem principal do romance, é a representação máxima tanto das novas características dos derradeiros romances queirosianos, notadamente mais românticos, quanto da ressalva, expressa por Hansen, a respeito da ironia e da perspectiva observadora que, não obstante as mudanças, permanecem. Isso porque, ao mesmo tempo em que encarna o passado glorioso português, através do “sangue nobre” que carrega e dos grandes feitos que reconstrói por meio de sua novela histórica, baseada nas ações sublimes dos seus antepassados; ele também representa o presente decadente, marcado, dentre outras coisas, pelas dívidas que herdou de seu pai e por suas atitudes pouco louváveis.
Gonçalo é uma constante desconstrução de si mesmo, na medida em que se contradiz, e, malgrado as afirmações de José Antonio Saraiva sobre a ausência de profundidade do personagem e sua submissão ao único propósito de alegorizar Portugal, o que faria dele o maior de todos os títeres, o “Fidalgo da Torre” parece ter antes algo complexo, algo de indivíduo. Sim, é possível entrever em sua personalidade e em suas características a própria Portugal; mas também é possível ver nele o que é essencialmente humano.
Há, em Gonçalo, o egoísmo e o amor a si, ao mesmo tempo em que há o altruísmo e o amor ao outro. Há a insegurança e a submissão para com a opinião alheia, assim como há a defesa da própria opinião, quando lhe cabe. Há a má-fé e a boa também. Tudo isso convive no personagem fictício, auxiliado pelo uso do discurso indireto livre que nos permite acompanhar mais diretamente as suas reflexões.
E há um ponto derradeiro. Gonçalo Mendes Ramires é dotado de reflexão metalinguística. Ele é capaz de não só escrever, apresentando a criação da ficção dentro da ficção, como também de refletir sobre o que escreve. Afinal, Gonçalo não é menos fidalgo quando é escritor. E, talvez, o contrário também seja verdadeiro.
Tendo por base as definições da Infopédia, não poderia haver melhor nome para denominar Gonçalo do que ‘fidalgo’. Que outra palavra poderia abarcar em si, tão bem, o que há de mais nobre e de mais vil? Assim como o protagonista, o termo também assume significados contraditórios, podendo caracterizar desde aquele que, de fato, “tem títulos de nobreza”, sendo, dessa forma, um “nobre”; até, pejorativamente, aquele que “vive sem trabalhar e que anda bem vestido”, inclusive sendo “esquisito com a comida; de má boca” (essa última característica, aliás, surge no livro de maneira bastante cômica). Ou seja, ao chamá-lo Fidalgo da Torre, evoca-se, simultaneamente, a nobreza e a baixeza de seus atos, sem excluir um ou outro.
Com efeito, Gonçalo é ambos. Graças ao seu sangue, que o liga às origens de Portugal, ele é um fidalgo por seu passado de nobreza. Entretanto, no presente, isso representa mais nome do que, efetivamente, uma vida confortável que lhe seja condizente. Não é à toa que a cena, passada na Bica da Santa, é de tamanha ironia.
Estando Gonçalo a conversar com Sanches Lucena e sua esposa, D. Ana, ele relembra uma festa a fantasia à qual essa última compareceu vestida de Imperatriz Catarina da Rússia. A essa menção, Lucena responde dizendo que também se lembrava da festa, não por causa da esposa, mas da irmã de Gonçalo, D. Graça Ramires, que fora vestida de lavradeira de Viana. Ora, soa irônico que a moça de real sangue nobre, Gracinha, tenha ido vestida como camponesa; enquanto D. Ana, que nenhuma fidalguia possuía, trajasse a roupa de uma imperatriz. No entanto, isso só aparece para reforçar a atual situação dos Ramires: na prática, com suas dívidas e dependência de arrendamentos, estavam mais para os camponeses do que para os nobres.
Já o que ocorreu pouco antes dessa mesma cena serve para ilustrar que, não obstante as dificuldades financeiras, ele é, de fato, dotado de atitudes realmente nobres. Em Valverde, vendo um lavrador de enxada machucado, cede sua égua para que ele possa ir embora para casa. Quando encontra Sanches, é nessa condição que está: a pé, guiando a égua pela rédea, com o lavrador sentado sobre ela. Tal atitude lhe rende, inclusive, a alcunha de Bom Samaritano, “mas para melhor!”, embora isso, na fala de Lucena, soe mais como chacota que como elogio.
No entanto, é nos momentos em que assume mais claramente a posição de escritor que as relações entre seu passado glorioso, justificativa de sua fidalguia, e seu presente decadente tornam-se mais óbvias e pungentes. Isso graças, em grande parte, ao ardil de Eça de Queirós que, a todo momento, tece os acontecimentos em paralelo, contrapondo, a despeito do lapso de tempo, os ocorridos anteriores e os atuais – todos interligados simbolicamente pelo espaço comum que resistiu aos séculos: a Torre localizada no Paço de Santa Ireneia, que representa a alma dos Ramires e o elo entre todas as gerações.
Não só isso, mas o fato de conceder a um personagem a posição de (re)contador e criador de histórias faz com que o próprio fazer fictício entre em questão, pois o personagem, enquanto vive uma ficção, torna-se, ele também, narrador de uma.
Alexandre Herculano, no seu conto “O Bispo Negro”, afirma que “a história é verdadeira, a tradição é verosímil; e o verosímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria”. Acompanhando o processo de escrita de Gonçalo, é notável como ele aplica essa ideia ao que escreve, pois, não raro, manipula os acontecimentos – que, com grande probabilidade, já lhe chegaram manipulados – para adequá-los aos seus propósitos, aos efeitos que quer causar. Isso ocorre, por exemplo, quando ele altera o cenário do início de sua novela, o qual, originalmente, se passaria em um entardecer outonal:
Mas, como era então junho e a lua crescia, Gonçalo determinou por fim aproveitar as sensações de calor, luar e arvoredos, que lhe fornecia a aldeia – para levantar, logo à entrada da sua novela, o negro e imenso Paço de Santa Ireneia, no silêncio duma noite de agosto, sob o resplendor da lua cheia.
A manipulação, inclusive, dá-se até mesmo fora do texto destinado aos ANAIS DE LITERATURA E HISTÓRIA, revista de seu amigo na qual a novela seria publicada, pois, não raro, ao recontar fatos ocorridos consigo, Gonçalo os exagera ou deles omite partes para que causem o efeito desejado. É o que faz tanto ao falar de seu acordo de arrendamento realizado com Pereira Brasil quanto ao repassar as informações sobre o escândalo, trazido a seu conhecimento por Guedes, envolvendo seu desafeto, André Cavaleiro. No primeiro caso, omite o fato de que havia, sim, firmado acordo com José Casco, reduzindo o arranjo a qualquer coisa mencionada, mas não concordada. No segundo, afirma que ele sabia de tudo antes mesmo de encontrar Guedes, o que confere ao relato mais procedência e repercussão do que, efetivamente, tivera.
A originalidade e o talento são duas outras coisas que, ao escrever, o Fidalgo da Torre coloca em questão. Isso porque o ponto de partida de “sua obra” – no próprio romance, a expressão aparece entre parênteses – nada mais é do que a transformação em prosa de um poemeto de um tio seu, Duarte, irmão de sua mãe, chamado Castelo de Santa Ireneia, que fora publicado, anos antes, no semanário Bardo. Graças a isso, Gonçalo “nem teria a canseira de esmiuçar as crônicas e os fólios maçudos… Com efeito! toda a reconstrução histórica a realizara, e solidariamente, com um saber destro, o tio Duarte”. É interessante observar que ele questiona – e descarta – a questão do plágio, pois,
A quem, com mais seguro direito do que a ele, Ramires, pertencia a memória dos Ramires históricos? A ressurreição do velho Portugal, tão bela no Castelo de Santa Ireneia, não era obra individual do tio Duarte – mas dos Herculanos, dos Rebelos, das Academias, da erudição esparsa. E, de resto, quem conhecia hoje esse poemeto, e mesmo o Bardo, delgado semanário que perpassara, durante cinco meses, há cinquenta anos, numa vila da província?…
Citar romancistas históricos traz à baila, inclusive, a questão a relação íntima que essas narrativas mantinham com os documentos da história, a ponto de alguns textos de Herculano, por exemplo, parecem quase transcrições do que fora documentado. Havia nesse tipo de escrita um compromisso com a verdade histórica que não se realizava e que, em A Ilustre Casa de Ramires, continua a não se realizar. Isso porque os propósitos do presente em que o escritor vive intervêm na sua escrita.
O tempo da narrativa é influenciado pelo tempo da escrita, no sentido de que o contexto influencia o texto. Em “O Bispo Negro”, era relevante ressaltar a força de Afonso Henriques, que submetia, de forma crua, desde sua mãe até as decisões do clero. Por sua vez, em A Ilustre Casa de Ramires, era importante a ideia de uma Portugal decadente que, no entanto, acenasse para caminhos de regeneração; em A Torre de D. Ramires, Gonçalo não só busca a reconstrução das glórias da pátria através da reconstrução de sua própria genealogia, mas também um reconhecimento que o engrandeça, lançando-o na política.
Sobre o paralelo, já mencionado, que Eça traz entre a vida de Gonçalo e o que ele narra em sua novela, protagonizada por outro dos Ramires, o Tructesindo, podemos entrevê-lo já no primeiro capítulo escrito pelo fidalgo. Nele, tendo prometido ao rei falecido, D. Sancho I, que defenderia e cuidaria de sua filha favorita, D. Sancha, não abre mão dessa promessa nem mesmo sob a ameaça certa de ser odiado pelo Rei e pelo Reino. Diz ele: “De mal ficarei com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra e comigo!”.
Tendo terminado essa narrativa, é anunciada a visita de Manuel Pereira. Nesse momento, ocorre o que já foi dito: a despeito da palavra que dera a José Casco, de arrendar-lhe a terra, Gonçalo fecha negócio com Pereira, uma vez que esse lhe oferece mais dinheiro do que aquele. Ou seja, logo após narrar sobre a promessa que nem a morte foi capaz de quebrar, falta com a sua própria palavra. O glorioso e honrado passado contraposto ao pouco louvável e valoroso presente.
Tornando ao assunto da originalidade, há uma passagem que destaca bem e com ironia a questão: “Assim adornara a soturna sala afonsina com alfaias tiradas do tio Duarte, de Walter Scott, de narrativas do Panorama. Mas que esforço!…”. Mais uma vez, apresenta-se a criação de Ramires como conjunto de criações anteriores – assim como a ideia inicial de “sua obra” era, na verdade, a ideia de seu tio. A já mencionada frase, inclusive, sobre a manutenção da promessa, é insinuada como a única parte realmente original no primeiro capítulo todo, diante da qual Gonçalo exclama a frase que acaba por soar irônica: “Caramba! Aqui há talento!”.
Gonçalo, enquanto narrador, reflete sobre outra questão – a verossimilhança: “desmanchara essa linha tão erudita, ao recordar, com um murro na mesa, que ainda a Imprensa não se inventara em tempos de seu avó Tructesindo[…]”; e, por vezes, lança críticas à sua própria escrita: “Larga! Largos!… E os pálidos raios, os eternos pálidos raios!…” Também este maldito castelo, tão complicado!… E este D. Tructesindo, que eu não apanho, tão antigo! Enfim, um horror!”.
As metáforas e comparações das quais Eça lança mão no decorrer do processo de escrita de Gonçalo – a exemplo do “lento arado em chão pedregoso”, ilustrando a dificuldade; ou da “quilha leve em água mansa”, expressando o oposto – auxiliam-nos a acompanhar o avanço da escrita do protagonista. De fato, ela avança.
Entretanto, isso não faz com que cessem os paralelos entre a glória do passado e a decadência do presente: à promessa mantida, a quebra da palavra; ao assassinato em nome da honra, a exposição da irmã ao assédio. Além disso, há ainda outros elos mais “neutros”, como um encontro a ocorrer dentro da novela que é interrompido por um encontro fora dela. Contrapondo-se duplamente à ficção, a realidade – e por meio daquela, essa sendo não só enxergada, mas vista.
Por isso, no discurso do romance, uma ironia: pois os fatos do passado, diante do presente, soam como distante ficção. E, de fato, será que não o são?
Considerando a complexidade que Gonçalo Mendes Ramires apresenta diante da sua posição de fidalgo escritor – ou escritor fidalgo? –, parece-nos mais justa a posição que assume Antônio Cândido, ao afirmar que, em A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós conseguiu “produzir uma personagem dramática e realmente complexa”. Isso porque ser escritor é apenas uma parte de Gonçalo e, ainda assim, dela se extraem muitas reflexões.
A possibilidade de acompanhar a escrita de uma obra dentro de outra obra é algo enriquecedor. É a criação, usando as palavras de Hansen, de uma metalinguagem fictícia, considerando-se, aqui, a ficção não como uma falsidade, mas, como sugerem os estudiosos Santos e Oliveira, uma “suspensão do limite que separa os conceitos de falso e verdadeiro”.
Ademais, somos todos um misto de contradições. Isso nos torna humanos, dá-nos personalidade e profundidade. Por isso e por tudo que foi dito aqui, a ideia de que Ramires seja mero títere parece se tornar insustentável. A menos que títeres sejamos todos, à mercê do próprio paradoxo que é existir – em fato ou em ficção.
REFERÊNCIAS
QUEIRÓS, E. de. A Ilustre Casa de Ramires. 2ª ed. São Paulo: Ateliê, 2000.
MARINHO. M. de F. O romance histórico de Alexandre Herculano. Revista da Faculdade de Letras: Línguas e Literaturas, série II, vol. 09, 1992, pag. 97-118.
SANTOS, L. A. B., OLIVEIRA, S. P. de. Sujeito, Tempo e Espaço Ficcionais: introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (p.1-31)
Escrevo porque, no fim, serei a soma das minhas palavras.