SINOPSE: Na Paris do século XV, a cigana Esmeralda dança em frente à catedral de Notre Dame. Ao redor da jovem e da igreja, dançam outros personagens inesquecíveis – como o cruel arquidiácono Claude Frollo, o capitão Phoebus, a velha reclusa Gudule e, claro, o disforme Quasímodo, o corcunda que cuida dos sinos da catedral. Com uma trama arrebatadora, que tem a cidade de Paris como bem mais do que um mero pano de fundo, Victor Hugo criou um dos grandes clássicos do romantismo francês, de leitura irresistível.
Essa igreja central e geradora é, entre as velhas igrejas de Paris, uma espécie de quimera: tem a cabeça de uma, os membros da outra, o traseiro de uma terceira – e algo de todas.
Todos sabemos, após findar a leitura de Corcunda de Notre Dame, que a protagonista da história não é uma personagem comum e que circula tranquilamente pelas ruas de Paris, mas sim que está estagnada, vendo a vida e a morte caminharem lado a lado diante dela.
Contudo, mesmo quando estamos parados e vendo as pessoas seguirem seus destinos, vivemos e aprendemos. Quem nunca olhou para a janela do ônibus, observou situações do cotidiano e se questionou a respeito delas? Nós notamos os outros, nem que seja uma vez.
A catedral de Notre Dame não é diferente nesse aspecto, embora não tenha pernas para caminhar ou olhos para bisbilhotar, ela vê e sente o passar do tempo de maneira tão particular que somente Victor Hugo é capaz de nos demonstrar no decorrer das páginas de sua obra.
Aliado à sua estilística sensível e incrível, nós conseguimos perceber nuances de uma Paris que nem os contemporâneos da época do autor e muito menos nós, nos dias atuais, teríamos a chance de descobrir e nos aventurar. Graças a ele e a perspectiva adotada, nós conhecemos Paris e seus personagens porque observamos tudo a partir de uma perspectiva que passou por todos aqueles anos, que foi moldada por diversos homens diferentes.
Não é por acaso que seu texto começa com:
Faz hoje trezentos e quarenta e oito anos, seis meses e dezenove dias que os parisienses foram acordados ao som de todos os sinos, a plenas badaladas, na área que compreendia a Cité, a Universidade e a Cidade.
Quem é imortal? Quem vive tempo o suficiente, entre os homens para nos contar uma história? Que perspectiva sobra para narrar antes mesmo das folhas impressas? Victor Hugo, durante as páginas de sua obra, reforça-nos que é a estrutura arquitetônica, pois ela é feita pelo tempo, o seu arquiteto preferido.
A partir do passar do tempo é que podemos ver os fatos se estenderem, entender as motivações dos pedreiros, como Victor Hugo menciona os homens, em certo momento. Esses personagens, que reconstroem e reformam a catedral e toda a Paris, são os personagens que contracenam junto dela na mistura de trágico e cômico que Corcunda nos apresenta.
Como a própria Notre Dame, tudo dentro daquela cidade tão famosa é uma mistura. A própria catedral é uma quimera, criatura que possui partes de diversos animais em sua constituição física, revestida de estilos arquitetônicos variados que a complementam e a tornam tão sublime.
Não diferente da cidade ou da estrutura que protagoniza a história de Victor Hugo, o próprio povo é miscigenado e partido em pequenos estilos diferenciados, formado por ladrões, ciganos, nobres, soldados, clero, juízes, entre tantos mais personagens de origens, tradições e povos diversificados. O que não falta na obra é mistura, então, por que não usar um pouco dessa mescla no próprio romance?
Entre as risadas geradas pelo cômico e pelo caricato dentro da história, a partir de alguns personagens como o poeta Pierre Gringoire ou o próprio capitão Phoebus de Châteaupers, também encontramos personagens extremamente complexos e sofridos, com traumas, desejos e aflições que os levam direto a uma catábase, ou seja, uma descida direto ao fundo do poço ou a morte.
Não somente os personagens fazem com que essa impressão ocorra, pois, ao lermos a narrativa, percebemos que existem momentos em que não conseguimos segurar o riso; em outros, o choro. São essas pequenas minucias no enredo e na estrutura elaborada por Victor Hugo que nos fazem perceber essa mistura, como é entre texto narrativo e artigo científico; quando se fala da arquitetura.
Os dois gêneros literários, a comédia e a tragédia, que também representam as duas máscaras que dividem a arte, nasceram no teatro, na época da Grécia Antiga em cerimônias dionisíacas, oferecidas ao deus do vinho, Dioniso. Esses dois pontos parecem opostos, levando em consideração que um faz rir e o outro, chorar, contudo, são complementares, porque são duas formas diferentes de mostrar ao público um pensamento crítico.
Tanto a comédia quanto a tragédia fazem críticas sociais fortíssimas sobre o mundo. Um exemplo da própria Grécia é o teatro euripidiano, que faz parte da trindade consagrada dos tragediógrafos gregos. Eurípides, no caso, era um homem que se declarava, a partir de suas peças, completamente contra as guerras de seu tempo, mesmo que tenha ido para o campo de batalha, levando em consideração o ponto de vista dos derrotados e das mulheres, como ocorre em Hécuba e As Troianas.
Não diferente da tragédia, a comédia também trazia o pensamento e a reflexão sobre problemas sociais – ou até mesmo sobre pessoas contemporâneas –, utilizando-se a maioria das vezes de personagens completamente exagerados para isso, como foi o caso de Aristófones, em peças como As Nuvens. Inclusive, vale ressaltar que, na própria França, alguns anos antes de Victor Hugo, o teatro cômico ainda estava em voga com personagens famosos, o caso, por exemplo, de Molière, autor de peças como O Misantropo.
Além de personagens caricatos dentro do romance de Victor Hugo, podemos encontrar cenas absurdamente cômicas, não no sentido que nos façam rir loucamente (o que podem fazer), mas próprias desse tipo de teatro. Um momento que me recordo muito bem é a cena entre o Quasímodo e o juiz no interrogatório em que havia perguntas sem respostas e estava tudo bem, isso porque os dois personagens eram surdos. Quasímodo não ouvia as questões e o juiz não escutava as respostas, então, o que vemos a todo momento é uma crítica ao sistema judiciário a partir de uma tentativa de fazer comicidade, pois, como é ressaltado dentro da obra a todo momento: o preconceito é tão forte que não importa se há inocência ou culpa, só precisam da pena.
Após essa cena, repleta de tropeços engraçados, literalmente, em seguida, temos duas cenas extremamente tristes e comoventes que poderiam nos levar as lágrimas, também repleta de artifícios do trágico. A história de Gudule, ou Paquette Chantefleurie, e de sua filha sequestrada; e, de novo, em sequência, o açoitamento de Quasímodo, um personagem cheio de traumas e problemas que é repreendido muito mais por sua aparência do que por suas atitudes.
Além desses dois momentos intensos e cheios de percalços, o próprio final da história é trágico. Um dos pontos mais altos das tragédias é que quase sempre tudo acaba mal, com exceção de Medeia, ainda que ela mate seus próprios filhos. Em Corcunda, com exceção de um personagem, todos os outros morrem ou são infelizes pelo resto da vida.
Essa mistura de Victor Hugo é um dos pontos mais altos de sua história, porque nos mostra que o belo e o feio se misturam, o bem e o mal, como também o sorriso e a lágrima; o trágico e o cômico. A vida não é linear, mas uma subida e descida constantes de vivências, expectativas e momentos.
Ao fazer essa mistura do trágico e do cômico, em minha concepção, podemos ver a própria sociedade francesa. Na comicidade, vemos a vulgaridade; na tragédia, o fim dos justos – e de alguns injustos, claro.
REFERÊNCIAS
HUGO, Victor. O corcunda de Notre Dame: edição comentada e ilustrada. Tradução, apresentação e notas Jorge Bastos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
Viciada em livros, fanática por animes e escandalosa assistindo filmes.