ANÁLISE #19: ODE AO SARCASMO

 
 
ANÁLISE: O Guia do Mochileiro das Galáxias
AUTOR: Douglas Adams
 

SINOPSE: Segundos antes de a Terra ser destruída para dar lugar a uma via expressa interespacial, Arthur Dent é salvo por Ford Prefect, um E.T. que fazia pesquisa de campo para a nova edição de O Guia do Mochileiro das Galáxias. Pegando carona numa nave alienígena, os dois dão início a uma alucinante viagem pelo tempo e pelo espaço.

O que é caos e o que é ordem? O que é lógico e o que é insensato? São questões dicotômicas sempre impostas a todos nós, evitando – muitas das vezes – a possibilidade de pensarmos nas inúmeras e infinitas possibilidades de cada ideia, verdade ou inverdade que aparece diante de nós.

O Guia do Mochileiro das Galáxias é uma caixa de surpresas, muitas delas boas e muitas delas extremamente críticas. A narrativa é um aglomerado de tramas dentro do espaço-tempo, os quais são infinitos dentro de sua medida. Essa infinitude assusta, pois só mostra a nossa ignorância.

O que Douglas Adams faz, constantemente, dentro de sua história, é mostrar o quanto a humanidade é cega para a verdade, embora acredite que não. Ele também demonstra dois opostos: aqueles homens que não desejam ver a verdade, mesmo que esteja em sua frente; e aquelas pessoas que estão dispostas a desbravar cada ponta do universo, ainda que não dê tempo para fazê-lo, representados, respectivamente, na figura de Arthur Dent e Trillian Mcmillan.

Entretanto, entre as múltiplas ideias abordadas por Adams, como, por exemplo, essa dicotomia da perspectiva da razão e busca de conhecimento humanos, o que mais conduz leitores vorazes para sua obra e a transforma em clássica é o sarcasmo constante e vivo dentro da narrativa. A acidez e o humor são dois lados da mesma moeda, sendo assim, o autor intercala o melhor do satírico em sua trama.  

De acordo com o Houaiss, o satírico é o “que diz respeito a sátira; que satiriza, que contém sátira; que tem tom cáustico; mordaz, ácido”. Da etimologia da palavra, encontramos “satura” provindo de uma expressão conhecida como “lanx satura”, que queria dizer “prato misto, bandeja com diversos tipos de fruta”, enquanto, por sua vez, “satur”, seria algo relacionado a “completo ou cheio”.

Há duas aplicações plausíveis para o termo, o primeiro estaria de acordo com uma coleção de poemas sobre múltiplos assuntos, enquanto, em uma segunda opção, seria uma coletânea poética que tratava de vícios e maus feitos alheios. Logo, de acordo com o que é assinalado, é possível compreender como se chegou ao termo satírico, visto que a palavra apreende, a partir de sua etimologia e de sua relação literária, uma abundância miscigenada, dessa forma, abrindo o texto para inúmeras possibilidades. Ao mesmo tempo, essas possibilidades poéticas passaram a tratar sobre vícios e problemas, o que não retira da poesia a beleza. Era a forma de dizer abundantemente sobre os malefícios, fazendo-o de forma poética e não necessariamente clara para o ouvinte, ou seja, utilizando-se de ironia ou, se mais explícito, de sarcasmo.

É exatamente essa ideia que o livro O Guia do Mochileiro das Galáxias e suas outras quatro partes passam para o leitor: um sarcasmo abundante e que nos faz investigar nossas diretrizes.

Muitos pensam que Douglas Adams é um escritor que usa somente de uma acidez irônica, contudo, devo dizer que o vejo mais como um homem extremamente sarcástico do que de fato irônico, embora ainda o seja, visto que ele não deixa – na maioria das vezes – dúvidas sobre a sua crítica, dando-lhe explicitude o suficiente para que qualquer um possa percebê-la.

Mas por que um termo é melhor do que o outro para expressar as ideias de Adams? Sarcasmo é uma ironia cáustica, segundo o Houaiss. A sua etimologia provém do termo grego “sarkasmós” que significava “riso amargo”, vindo do verbo grego “sarkádzo” que seria o mesmo que “abrir a boca para mostrar os dentes ou para pastar como fazem os herbívoros”. Enquanto, por sua vez, ironia é “dizer o contrário do que se quer dar a entender”, provindo de “eironeía”, também uma palavra grega, que representava a “ação de interrogar fingindo ignorância; dissimulação”.

No decorrer das páginas de Adams, vemos muito mais a explicitude do que de fato uma ocultação de ideia. Adams torna cada vez mais claro o que quer dizer e diz sem nenhum pudor, pois – para ele –, como vemos na figura de Dent, se um homem não quiser ver, ele simplesmente não verá.

Dessa forma, chamá-lo de sarcástico me parece de muito mais bom senso do que chamá-lo de irônico, como muitos de seus fãs alegam, pois é a sua acidez marcante e presente que faz com que o livro seja tão comentado e conhecido, trazendo, dentro de sua composição, frases pequenas que irão expandir todo o seu mundo.

Obviamente, como é criticado dentro da narrativa, a leitura de um livro como O Guia do Mochileiro das Galáxias não fará necessariamente com que suas ideias se expandam e sua filosofia seja repensada. Quem deve fazer essa transição de pensamento e investigação é você, o leitor.

Há algo que devemos sempre enfatizar e sempre dizer para nós mesmos, ainda mais em livros cuja a narrativa é muito simples e ágil: nós, como leitores, podemos não entender ou deixar passar muitos pontos que condizem com a narrativa e fazem diferença. O Guia é um livro em que as informações são muitas como também rápidas, fazendo com que diversas lacunas possam deixar de ser preenchidas se não prestarmos atenção aos detalhes.

O que não ocorre, de nossa parte, muitas das vezes, quando pensamos em criticar algo, é que pode nos faltar alguma coisa, algum conhecimento que nos faça compreender o que está sendo comentado. Logo, o leitor, antes de tudo, deve ser crítico não somente com a sua leitura, mas consigo mesmo e, ao lado do escritor, tentar compreender o sarcasmo presente na história e investigar se suas perspectivas são congruentes ou não com as que estão sendo transmitidas.

Basicamente, é o mesmo que dizer que não adianta ler os clássicos mais famosos e críticos se você não se importar o suficiente para entender a mensagem: devemos ler criticamente, sejam livros críticos ou livros de entretenimento puro. Um exemplo disso, são os indivíduos que leem O Guia e continuam sendo machistas, porque não perceberam a importância da figura feminina na construção do universo elaborado por Douglas Adams.

Mas, obviamente, fica a critério do leitor se deseja se aprofundar nas passagens do livro ou ficar no raso, vagando ao lado de Arthur Dent, sem, de fato, desejar conhecer nada. Há sempre uma escolha. Na verdade, podem ser até quarenta e duas.  

 

REFERÊNCIAS

ADAMS, Douglas. O Guia do Mochileiro das Galáxias. São Paulo: Arqueiro, 2009.

_______. O restaurante no fim universo. São Paulo: Arqueiro, 2009.

_______. A Vida, o Universo e Tudo Mais. São Paulo: Arqueiro, 2009.

_______. Até Mais, e Obrigado Pelos Peixes. São Paulo: Arqueiro, 2009.

_______. Praticamente Inofensiva. São Paulo: Arqueiro, 2009.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001.

< http://origemdapalavra.com.br/site/palavras/satira/>; consultado em 30/11/2017 às 03:23