ANÁLISE #18: ALICE POR ALICE

 
ANÁLISE: Alice no País das Maravilhas & Alice Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá
AUTOR: Lewis Carroll
 

SINOPSE: Passados 150 anos da publicação original, a clássica história de uma menina chamada Alice, que entra em uma toca atrás de um coelho falante e cai em um mundo de fantasia, continua popular.

É exatamente disso que me queixo! Devia ter querido! De que acha que serviria uma criança que não quer dizer nada? Até uma piada tem de querer dizer alguma coisa… e uma criança é mais importante que uma piada, espero. Você não conseguiria negar isso, nem que tentasse com as duas mãos.

LEWIS CARROLL

 

A obra mais conhecida de Lewis Carroll é, sem sombra de dúvida, Alice no País das Maravilhas. Existem diversas adaptações da obra, como também narrativas que se inspiraram nela em todo o mundo. Quantas vezes nos deparamos com a Alice? Ela muda de nome, muda de aparência, mas é intrínseca dentro de diversas personalidades, exemplo disso é Coraline, do livro homônimo, história de Neil Gaiman, e Sofia, de O Mundo de Sofia, do autor Jostein Gaarder.

Enfrentar um mundo fantástico ou se questionar sobre a realidade que vive faz parte de diversas tramas e, sem sombra de dúvida, Alice é uma grande fonte de inspiração para a maioria delas. Contudo, poucas pessoas são capazes de fato de valorizar uma história infantil.

Essa afirmação pode parecer estranha para alguns, mas quantas vezes você já ouviu ou leu alguém dizer que Carroll queria fazer uma história voltada para crianças, sendo assim, tudo que pode existir em Alice não faz sentido porque era exatamente isso que ele queria.

O maior erro do público contemporâneo, arreigado de preconceitos velados, é ignorar toda a importância que a literatura infantil e infanto-juvenil pode trazer. O problema intrínseco disso está no fato de que não há qualquer valorização desse tipo de literatura, muito embora as pessoas continuem a adaptar contos de fadas, inspirar-se em tramas infantis; contudo, para esses indivíduos, isso não parece querer dizer nada, mas diz muito.

Vivemos em um espaço no qual valorizamos apenas certas obras. Nós valorizamos o cânone da literatura, a erudição e julgamos quem lê uma parcela de livros que não condizem com um padrão elitista. Ler é particular, é uma experiência entre você e o livro, ninguém mais. As pessoas não podem acreditar que há uma literatura superior, as pessoas podem perceber que há diferentes literaturas, mas nenhuma é menor do que a outra.

Eu divido a literatura como me ensinaram na Academia. Há a literatura voltada para especificamente o entretenimento e a outra para a reflexão crítica e, entre elas, livros que se estendem pelos dois caminhos. Há textos que vão enriquecer os indivíduos de forma que nenhum outro irá fazer; há outros que estão lá para passarmos o tempo – e nem por isso devemos considerar um tipo de literatura melhor que a outra, pois possuem intuitos diferentes entre si.

Por conta desse elitismo academicista que julga parte da literatura superior a outra, podemos perceber que a literatura infantil se tornou, nessa divisão, mero entretenimento. Isso se deve ao fato de que as pessoas acreditam que crianças não têm nenhuma necessidade de conteúdo, embora elas sejam as mais curiosas com os seus infinitos questionamentos.

Não é porque, quando crianças, os meninos e as meninas não vão perceber as minúcias do texto que elas, automaticamente, vão deixar de perceber que há algo ali, algo maravilhoso que não sabem explicar. Até mesmo, nós, adultos, passamos por isso. Quantas vezes você leu um livro, percebeu que havia algo ali, mas não sabia dizer o que era? Não há uma faixa etária exata para definir o quanto uma literatura precisa ser profunda, simbólica ou fantástica. As pessoas, infelizmente, que se limitam a isso.

Dentro da Academia, podemos perceber nitidamente a desvalorização da literatura infantil, com raras exceções; fora dela, podemos perceber nos pequenos detalhes. Certa vez, a minha professora – de Literatura Infanto-Juvenil – me disse que há uma culpa ambígua para a desvalorização, pois os próprios profissionais infantilizam, ou melhor, floreiam a literatura infantil de tal forma que faz parecer que não passa de um entretenimento para as horas ociosas; enquanto os demais, observando e julgando, finalizam o serviço e afirmam o quão a literatura infantil é pequena.

Contudo, soa extremamente contraditório porque a base do que nos tornamos está em nossa infância. Se temos problemas muito recorrentes na infância, temos tendências a sermos adultos problemáticos. As pessoas que sofreram bullying e jamais conseguiram se recuperar? Tudo que ocorre conosco na infância nos marca a ferro e fogo, a literatura também faz isso.

Quando passamos nossa infância conectados à literatura, eu acredito que somos capazes de sentir o mundo mais fantástico do que ele parece ser quando crescemos, nós somos capazes de entender mais as pessoas porque conhecemos as histórias universais, aquelas narrativas nas quais existem personagens tão bem estruturados que nós conseguimos não somente nos identificarmos, mas notar suas nuances em outros seres humanos.

Alice, por exemplo, é uma personagem tão bem estruturada que, no decorrer das narrativas, Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho, somos capazes de perceber o seu crescimento, como outrora não reconhecia e não se importava com o que dizia para os demais até ficar extremamente cuidadosa com o que iria falar, pois poderia ferir alguém. Nós a vemos crescer e diminuir diversas vezes, perdida em ser maior ou menor, seja na aparência ou na mentalidade, visto que estava passando por uma fase em que não sabia e nem entendia nada sobre o crescimento. Também conseguimos ver a questão fundamental que todos nós, sejamos adultos ou crianças, continuamos passando e sempre re-questionando: “quem é você?”.

É estranho ler, escutar ou perceber que alguém desvaloriza tudo o que uma narrativa pode trazer simplesmente por ser feita para crianças. É estranho ignorar as metáforas e a ideia do sonho como uma fonte recorrente e necessária para estimular a imaginação de crianças, anseios que fogem da realidade.

É estranho ignorar os símbolos por um motivo tão mísero! Os símbolos estão em tudo que é infantil, justamente porque somos simbólicos, seja nos contos de fadas, em narrativas posteriores de O Mágico de Oz ou Alice, ou em livros voltados para o público adulto.

Contudo, eu sei que – em nossa infância – não percebemos esses símbolos claramente e nem sequer conseguimos identificá-los. Mas isso não quer dizer que não tenham e nem que não sentimos cada um deles enquanto lemos a história, pois é graças a esses símbolos e pequenos detalhes narrativos que nos identificamos com os personagens e queremos sê-los. Inclusive, é graças a eles que essas histórias se eternizam e continuam sendo recontadas depois de tantos anos. O que eu quero dizer é que não é porque não experienciamos e vivemos o suficiente para reconhecê-los, que eles não estão lá.

Não precisamos ler Alice buscando os símbolos frequentes, as possibilidades que a psicologia e/ou a psicanálise podem nos trazer em suas inúmeras leituras, os detalhes narrativos para nós amarmos a história ou entendermos.

Nós podemos ler – e precisamos ler – Alice por Alice. E, ainda assim, seremos capazes de nos encantar com tudo que apresenta, pois nós somos seres que conseguem sentir, conseguem perceber o outro, visto que vivemos em comunidade. Inclusive, até mesmo o nonsense (em português: o que não faz sentido) carroliano pode ser melhor apreciado, porque, para crianças, aquilo tudo é possível e é mágico, só basta lermos e somente lermos. Sem desvalorizar, somente sentindo e, com isso, perceberemos tudo que está lá, sem a necessidade de recorrer aos simbolismos e aos academicismos. 

Antes de ler Alice para tentar encontrar as nuances, eu encontrei a mim mesma, na minha primeira leitura – e me perdi completamente nela. Agora, encontrando novas possibilidades de interpretação, ainda que somente algumas, eu consigo compreender porque sempre fui tão apaixonada por essa história. E não sei se de fato foi tão gratificante quanto a minha primeira experiência, pois a magia em Alice é também se aventurar no nonsense e somente nisso. Nada mais.

 

REFERÊNCIAS

CARROLL, Lewis. Alice. Introdução e notas de Martin Gardner. Ilustrações de John Tenniel. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.