ANÁLISE #16: A VOZ ENTRE A REALIDADE E A FICÇÃO

 
 
ANÁLISE: Os Lusíadas
AUTOR: Luís Vaz de Camões

SINOPSE: Com centro na narrativa da viagem de Vasco da Gama até as Índias, Camões conta nesta epopéia a história do povo português, utilizando-se da estrutura clássica do poema épico. “Os Lusíadas” é, acima de tudo, uma declaração de amor de Camões à sua adorada terra lusitana. 

 
ANÁLISE: Mensagem
AUTOR: Fernando Pessoa 

SINOPSE: Único título publicado em português por Fernando Pessoa em vida, Mensagem é sem dúvida um dos poemas mais importantes do século XX, ao lado de Waste Land, de T. S. Eliot, dos Cantos, de Ezra Pound e das Elegias, de Rilke, entre outros. Cada um dos 44 poemas escritos ao longo da vida podem ser lidos independentemente ou em conjunto. O conjunto, considerado um único poema, foi dividido pelo autor em três partes: “Brasão”, “Mar português” e “O Encoberto”, assim como é mostrado na parte final da introdução no esquema gráfico do poema. A edição ora apresentada amplia o horizonte do poema por seus aparatos. Além da apresentação cuidadosa de Caio Gagliardi, há o intertexto do poema camoniano, Os lusíadas, e um glossário com explicações dos personagens históricos, mitológicos, epígrafes e lendas, também a datação dos poemas. De modo que atende tanto ao estudante iniciante quanto ao professor mais cioso. 

 

O passado é o vigorar do que não cessa de ser e nunca passa, pois é o permanecer de tudo que muda
MANUEL ANTÔNIO DE CASTRO

 

O passado se presentifica a todo instante, nas grandes e nas pequenas possibilidades do ser ou da história. Sendo contemporâneo de nosso tempo, o passado permanece nos relatos historiográficos como também nos ficcionais, criando uma linha tênue entre realidade e invenção. 

Como dito pelo professor Manuel Antônio de Castro, “o passado é o vigorar do que não cessa de ser e nunca passa”, pois ele continua presente nos textos atuais e também nos que outrora também já foram partes do futuro, exemplos disto são os livros Os Lusíadas e Mensagem – respectivamente, dos autores Luís de Camões e Fernando Pessoa – que recontaram a história de Portugal, ou melhor, o glorioso passado português.

Entre toda a gama de possibilidades deste passado rico e turbulento, o tema em destaque está sobre a primeira dinastia, sendo conhecida como Dinastia de Borgonha ou Afonsina. As estâncias 29 a 32, do texto camoniano, destacam como personagens centrais a senhora Tareja/ Teresa de Leão e, seu filho, D. Afonso Henriques, fundador do Reino de Portugal e seu primeiro rei.

 

Mas o velho rumor – não sei se errado,
Que em tanta antiguidade não há certeza

Conta que a mãe, tomando todo o estado,
Do segundo himeneu não se despreza.

 

A primeira parte da estância 29 começa narrando, a partir da voz de Vasco da Gama, sobre um rumor do passado que, por tão antigo, ele não tem certeza se é verídico ou não (“mas o velho rumor – não sei se errado,/ que em tanta antiguidade não há certeza -“). Nesse narrar, conta-se que uma mãe, sendo esta D. Teresa/ Tareja, tomou o estado, ou seja, as terras e a política após um segundo laço matrimonial, que não o primeiro de onde vinha o filho que a aloca em estado maternal.

Nos fatos históricos, o princípio de Portugal se fez quando Afonso VI de Leão e Castela casou uma de suas filhas, a ilegítima Teresa, com o francês Henrique de Borgonha, que lutou ao seu lado na guerra contra os mouros para expulsá-los da Península. Graças a esse matrimônio, Afonso VI deu ao conde (título que pertencia a donos de propriedades e guerreiros) uma parcela de sua terra, tal como havia feito com o primo dele, Raimundo.

O espaço dado ao Conde D. Henrique de Borgonha foi o Condado Portucalense que, em breve, chamar-se-ia Reino de Portugal. Entretanto, o francês morreu quando seu filho, D. Afonso Henriques, ainda estava na sua mocidade e, neste meio tempo, D. Teresa reinou sobre o condado e casou-se com o conde Fernão Peres de Trava.

Camões ressalta tanto D. Teresa/ Tareja apossando-se dos direitos ao reinado (“conta que a mãe, tomando todo o estado,”) quanto esse matrimônio no verso “do segundo himeneu não se despreza”, pois o conde Fernão Peres de Trava era da casa mais poderosa do Reino da Galiza e, por consequência, alguém poderoso que não poderia ser ignorado, ou como dito na própria épica, desprezado.

 

O filho órfão deixava deserdado,
Dizendo que nas terras a grandeza
Do senhorio todo só sua era,

Porque, pera casar, seu pai lhas dera.

 

A segunda parte da estância 29 relata sobre a orfandade de D. Afonso Henriques quanto ao seu pai, sentindo-se deserdado pelo novo matrimônio de sua mãe, que lhe rendeu duas irmãs (“o filho órfão deixava deserdado,”). No texto camoniano, D. Teresa acreditava que as terras lhe pertenciam, pois essas foram dadas ao conde Henrique de Borgonha pelo seu casamento arranjado com o francês (“dizendo que nas terras a grandeza/ do senhorio todo só sua era,/ porque, pera casar, seu pai lhas dera”).

 

Mas o Príncipe Afonso (que destarte
Se chamava, do avô tomando o nome),
Vendo-se em suas terras não ter parte,

Que a mãe com seu marido as manda e come,
Fervendo-lhe no peito o duro Marte,
Imagina consigo como as tome:
Revolvidas as causas no conceito,

Ao propósito firme segue o efeito.

 

A partir da estância 30, o nome Afonso aparece claramente para o leitor, remetendo-o ainda mais a figura de D. Afonso Henriques, que recebera o nome de seu avô, D. Afonso VI (“mas o Príncipe Afonso (que destarte/ Se chamava, do avô tomando o nome”). Sendo assim, o futuro rei de Portugal vê que sua mãe, mesmo após sua maioridade, continua a governar as terras das quais não “tinha” parte, ainda que também fossem de seu pai (“vendo-se em suas terras não ter parte,”).

D. Teresa, por sua vez, governava/ mandava com seu marido, conde Fernão Peres de Trava e, a partir da leitura de Vasco da Gama sobre o mito, em defesa de D. Afonso Henriques, Camões narra como se ela as comesse, ou seja, devorasse-as tanto por não dar o direito ao futuro rei de Portugal quanto por desgostar da “submissão” a Galiza (“que a mãe com seu marido as manda e come,”).

A partir dos fatos históricos, em 1122, D. Afonso Henriques, sob a orientação do arcebispo de Braga, arma-se cavaleiro na Catedral Zamora. Sendo assim, Vasco da Gama narra, com auxílio da Musa, sobre a fúria do futuro rei de Portugal e seu anseio por batalhar, guerrilhar o que era seu por direito (“fervendo-lhe no peito o duro Marte,”) já que em seu peito havia Marte, o deus da guerra romano.

D. Afonso Henriques, na narrativa camoniana e com a defesa de Vasco da Gama, começa a imaginar como tomaria de volta o que era seu por direito e ele também repensava as causas como se questionasse a si mesmo se era certo ou não na medida em que era levado a não ir contra a mãe, no entanto, o propósito – ou o que era melhor para Portugal – falava mais alto para que ele seguisse com seu feito (“imagina consigo como as tome: / revolvidas as causas no conceito, / ao propósito firme segue o efeito.”).

 

De Guimarães o campo se tingia
Co sangue próprio da intestina guerra,
Onde a mãe, que tão pouco o parecia,
A seu filho negava o amor e a terra.
Co ele posta em campo já se via;
E não vê a soberba o muito que erra
Contra Deus, contra o maternal amor;
Mas nela o sensual era maior.

 

Em 1128, as tropas de D. Teresa (como também de Fernão Peres de Trava) e de D. Afonso Henriques se encontraram no campo de S. Mamede, perto do antigo foral de Guimarães, para lutarem e, a partir desta batalha, D. Afonso Henriques conseguiu a vitória (“de Guimarães o campo se tingia/ co sangue próprio da intestina guerra,”).

Os outros versos da estância 31, em verdade, parecem ser um julgamento de valor e caráter realizado por Vasco da Gama, narrador, em relação a D. Tareja, pois ele relata que a matriarca de D. Afonso Henriques pouco parecia ser mãe (“onde a mãe, que tão pouco o parecia,”) e que também negava a seu filho amor e terra, que lhe eram de direito (“a seu filho negava o amor e a terra”) enquanto ambos estavam em campo de batalha (“co ele posta em campo já se via;”).

Finalizando este julgamento do narrador, ao menos, nesta estância, ele diz que a soberba era muita dentro de D. Teresa e, sendo assim, errava (“e não vê a soberba o muito que erra”), indo contra não somente a Deus, mas também ao amor de uma mãe (“contra Deus, contra o maternal amor;”), ou seja, Vasco da Gama diz que D. Teresa peca (tanto no sentido de cometer um pecado quanto também de faltar com D. Afonso Henriques), por este motivo, “mas nela o sensual era maior”, porque remete ao pecado capital, no caso, a luxúria, já que esta configura a oposição plena de uma mãe.

 

Ó Progne crua, o mágica Medeia!
Se em vossos próprios filhos vos vingais
Da maldade dos pais, da culpa alheia,
Olhai que inda Teresa peca mais!
Incontinência má, cobiça feia,
São as causas deste erro principais:
Cila, por ũa, mata o velho pai;
Esta, por ambas, contra o filho vai.

 

Na estância 32, Vasco da Gama, narrador da história de Portugal para o rei de Melinde, inferioriza as motivações de D. Teresa em comparação a dois ícones mitológicos que mataram seus filhos: Progne vingando-se de seu marido, o qual tentou tirar a virgindade de sua irmã, mata o filho e dá de comer ao próprio pai do menino e Medeia, a mulher traída, que degola os filhos como castigo para Jasão (“ó Progne crua, ó mágica Medeia!/ se em vossos próprios filhos vos vingais/ da maldade dos pais, da culpa alheia, olhai que inda Teresa peca mais!”).

Ao contrário de Progne e Medeia, Gama diz que Teresa não tem motivação que não a cobiça e a incontinência, ao contrário das outras duas que fizeram tudo por vingança, por maldade dos pais das crianças (“incontinência má, cobiça feia,”). Sendo estas as causas dos erros de D. Teresa (“são as causas deste erro principais:”), o narrador a comparada com Cila, assassina do próprio pai, por estar apaixonada por um rei estrangeiro e desejar casar-se com ele (“Cila, por ũa, mata o velho pai;”), no entanto, esta também cometeu somente um dos erros enquanto a mãe de D. Afonso Henriques fez mais (“esta, por ambas, contra o filho vai”) já que ela era luxuriosa e também desejava/cobiçava o reino.

A partir, principalmente, das últimas duas estâncias é possível perceber o ponto de vista do narrador em relação à figura feminina em questão, criticando-a negativamente como mãe e também como pessoa já que a coloca como pecadora (“sensual”, luxuriosa, ou melhor, aquela que comete “incontinência má”). Vasco da Gama está completamente a favor de D. Afonso Henriques enquanto filho e injustiçado futuro rei de Portugal, isentando-se em parte de seu julgamento – e o peso desse – pelo próprio decorrer mítico em que a mãe não se submete ao filho como deveria ser, ao menos, no parâmetro machista/ patriarcalista da época e, também, pelo princípio da estância 29 que, claramente, aloca a culpa em terceiros, ou melhor, nos rumores de terceiros desde antigamente, que nem ele sabe ao certo se são verídicos ou não, como já dito anteriormente.

Em Mensagem, por sua vez, Fernando Pessoa conflui com o narrador camoniano somente na utilização a personagem D. Teresa/ Tareja de Leão, ícone histórico, porque, em seu poema, ele traça uma mãe que é avó de impérios, realçando o lado maternal da mulher ao contrário da luta que ela possui com filho.

 

As nações todas são mystérios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de impérios,

Vela por nós!

 

Ainda que, como Camões, ele pareça mencionar o feito da batalha entre mãe e filho quando alega que a mulher amamentou soberanamente e na “brutal e natureza certeza que imprevisto Deus fadou”, ou seja, a brutalidade e a natureza dos conflitos humanos e também das ambições pelo poder foram imprevistas entre ela e aquele soberano, D. Afonso Henriques, que amamentou.

Entre a voz da realidade e da ficção, Fernando Pessoa deposita a confiança de um futuro melhor, pelo passado glorioso, também em D. Tareja, ao contrário de Camões que deposita essa confiança somente no filho da mulher e também a condena como má mãe, ainda que tenha gerado o futuro primeiro rei de Portugal.

 

Dê tua prece outro destino
A quem fadou o instinto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu.
Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não há o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!

 

Decerto, Pessoa e Camões desejam um futuro melhor para o lugar, ou melhor, para a Portugal em que ambos vivem (ainda que sejam em tempos distintos), o que se assemelha na narrativa, já que Camões julga o rei atual, enquanto Pessoa, a sociedade; e ambos peçam para que se crie outra vez a grandeza de outrora.

Nesse desejo de confiar no futuro a partir do passado, as colocações dos dois poetas sobre D. Afonso Henriques também se diferem já que, nas estâncias 29 a 32, Gama narra somente sobre a relação entre D. Tareja e o filho, alocando como principal a batalha entre os dois, ou melhor, a injustiça que D. Afonso Henriques sofreu em relação à mãe. Por sua vez, Fernando Pessoa, em seu poema, o aloca como cavaleiro, ou melhor, como pai mítico de Portugal e não, como filho.

 

Pai, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!

Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,

A bênção como espada,
A espada como bênção!

 

Com esse íntimo desejo que a glória retorne, ambos os poetas se focam em transformar o passado em símbolo, ícone e, principalmente, mito. Esse fato se dá pelo anseio do melhor para e pelo o próprio povo e, sendo assim, até que ponto pode-se dizer sobre o que aconteceu? Até que ponto a voz do poema está mais para a realidade ou à ficção narrativa? Até que ponto qual poeta tem seu ponto?

Não somente isso, mas até mesmo a própria historiografia pode ter sido alterada pela confabulação das narrações passadas de geração em geração, transformando-se em realidade o que, em verdade, poderia ser ficção. Como ressalta Bosi:

 

A cultura, pensada como um conjunto de ideias, valores e conhecimentos, traz dentro de si, em primeiro lugar, a dimensão do passado. Muitos conhecimentos foram herdados de outras gerações, não estamos começando do zero, muito pelo contrário, cada ano que passa acumula mais conhecimento. Cada vez mais a dimensão cumulativa, a dimensão de passado, se impõe. É extraordinário como a nossa memória tem que ficar cada vez mais enriquecida, porque o tempo passa e a memória cresce proporcionalmente.

 

A dimensão do passado é muito mais ampla do que pode ser vista e, como dito pelo professor Manoel Antônio de Castro, “é o permanecer de tudo que muda“, ou seja, a história se modifica através da narrativa e, graças a ela, ganha força para sê-la a partir das releituras feitas dela, sendo assim, herdamos o conhecimento que ela traz consigo e ampliamos o extraordinário de nossa memória, tal como aponta Bosi.

Como Paul Veyne diz, a história é um “palácio labiríntico”, pois jamais a conheceremos em um todo pelo simples fato que somente vemos um ângulo por vez e, muitas vezes, nem mesmo esse ângulo está pleno.

 

REFERÊNCIAS

CASTRO, M. A., Arte: O Humano e o Destino. Rio de Janeiro, ed. Tempo Brasileiro, 2011.
CAMÕES, L. V., Os Lusíadas. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros. Instituto Camões, 2000.
Vídeo: História Essencial de Portugal, autor do vídeo e da obra: José Hermano Saraiva. https://www.youtube.com/watch?v=u04KH2MEbLM
PESSOA, F., Mensagem. Rio de Janeiro: 7Letras, organização Cleonice Berardinelli e Maurício Matos, Ed. 1º, 2008.
BOSI, A., A Origem da Palavra Cultura. Fonte: Liter&Art, 2008.
CERDEIRA, T. C. Ficção e História: limites e utopias. CNPq: UFRJ.