ANÁLISE: No Moinho
AUTOR: Eça de QueirozSINOPSE: No começo, Maria da Piedade era uma mulher comparada a uma fada pelo médico de seu marido, João Coutinho. Ao conhecer o primo de seu marido, Adrião, ela se apaixona de primeira. Ajudando-o com a venda da fazenda, recebe um convite para visitar um moinho que ficava naquela região.
Eça de Queiroz, sem dúvidas, foi um dos maiores escritores portugueses. Por meio das suas obras, ele fazia críticas à sociedade portuguesa no final do século XIX, à urbanização e ao romantismo. No conto No Moinho, fica nítido o estilo dualista do autor e a forma singular como constrói os espaços e os personagens.
A história é contada em terceira pessoa, Eça de Queiroz escreve como se um personagem a parte, algum habitante da vila, contasse a história de D. Maria da Piedade. Em um trecho do primeiro parágrafo, fica evidenciada essa perspectiva a respeito do narrador quando é descrito o lugar onde morava a protagonista:
“Morava ao fim da estrada, numa casa azul de três sacadas; e era, para a gente que às tardes ia fazer o giro até ao moinho, um encanto sempre novo vê-la por trás da vidraça, entre as cortinas de cassa, curvada sobre a sua costura, vestida de preto, recolhida e séria.”
Na primeira frase do conto, a mulher já é descrita como “uma senhora modelo”, visto que dedicava a vida ao marido e aos dois filhos, todos doentes. Os aldeões se compadeciam com a vida resignada de D. Maria da Piedade, não só pelo trabalho de cuidar de duas crianças doentes e um marido inválido, mas também pela beleza e jovialidade da mulher que fora fadada àquela vida.
“A vila tinha quase orgulho na sua beleza delicada e tocante; era uma loura, de perfil fino, a pele ebúrnea, e os olhos escuros de um tom de violeta, a que as pestanas longas escureciam mais o brilho sombrio e doce.”
Para a vila, algo repetido diversas vezes ao longo do texto, Maria da Piedade era tida como mais do que um exemplo de mulher devota à família, era tratada como uma santa, mesmo que não fosse tão assiduamente religiosa. Era comparada a figuras divinas, ou que representassem pureza, como por exemplo à fada, à beata, e até à Maria, mãe de Cristo. Com esse teor divino, maternal e idealizado que é construída a personagem Maria da Piedade da primeira parte do conto.
Durante a descrição da personagem e da casa onde ela vivia com o marido e os filhos, Eça faz escolhas lexicais que contrastam com a imagem da mulher. O divino, em geral, é associado à claridade, limpeza e ao frescor, contudo, essas características são atribuídas somente à mulher. O autor descreve o lar da família como um ambiente lúgubre, com “ar abafado de febre”, compara o lugar a um hospital. Esse embate da personagem com o ambiente, faz alusão a solidão que D. Maria da Piedade sente. Já o seu marido, João Coutinho, é descrito murcho, trôpego, de “face macilenta”, desleixado, melancólico, entrevado, rabugento e sombrio, totalmente oposto à “a figura de fada” e “rosto de Virgem Maria” que esposa tinha.
A vida pacata que Maria da Piedade vivia fora absolutamente mudada quando o marido anunciou a visita que seu primo os faria. Adrião era um célebre romancista em Lisboa, fazendo Coutinho ter muito orgulho do homem. Ele chegava à vila para resolver negócios a respeito de uma venda de uma propriedade herdada do pai, entretanto, ainda que não tenha aceitado hospedar-se na casa do primo, aceitou a ajuda de Maria da Piedade com as finanças. O primo elogia o conhecimento da mulher com “as cifras”, o que “pela primeira vez na sua existência” a fez corar por um homem. Essa é a primeira ruptura da íntegra moral da mulher, fazendo com que deixasse o manto sagrado e imaculado de Maria e, aos poucos, tornando-se Vênus, a deusa do amor pagã que traia seu marido. Parágrafos antes, o autor escreve:
“Nunca tivera desde casada uma curiosidade, um desejo, um capricho: nada a interessava na terra senão as horas dos remédios e o sono dos seus doentes.”
A partir desse momento, o que ocorre é que Adrião e Maria da Piedade, gradualmente, aproximam-se nos passeios até o moinho abandonado, com a finalidade de resolver a venda da propriedade. Assim como Adrião encanta-se com a beleza, a delicadeza e aparência “virginal” que Maria exibia, ela, por sua vez, já criava por ele uma “simpatia, como um indefinido desejo de o ter sempre presente”, pois o primo tornara-se um ouvinte de suas tristezas.
O moinho abandonado, ao contrário da casa, é “digno de uma cena de romance”, como julgara Adrião, sendo mencionada, no decorrer do texto, por sua beleza rural: as verduras frescas, as árvores, a água corrente, os musgos, as pedras, o vento, a relva; com aves ao redor, a luz e o espaço. Esse espaço, no qual ocorre proximidade dos dois, é construído como o ápice do conto, fazendo uma analogia com o moinho parado e Maria da Piedade. Da mesma forma, é nesse momento que a Maria sagrada entra em embate direto com a Vênus profana.
O moinho funciona com a força do vento, com o impulso. Os domésticos, principalmente os das fazendas, eram usados para moer grãos e bombear água. É possível considerar que esse espaço foi construído pelo autor de forma que funcionasse como uma representação dos sentimentos e desejos reprimidos de Maria da Piedade, acionados pela forte presença de Adrião e pelo beijo que acontecera no local. A partir desse evento, a vida e personalidade de Maria da Piedade mudam totalmente. Vênus venceu a sacritude.
A mulher que é descrita nos primeiros parágrafos como santa, comparada às divindades; nos últimos, é uma devassa. A mulher que dava orgulho ao povo da vila, no fim, escandalizou-a. Todos os sentimentos que D. Maria da Piedade tinha reprimido em seu interior, foram despertados de uma vez por Adrião, por quem se apaixonou por um tempo. Leu todos os romances do primo, esses que são tidos na história como também responsáveis pela desvirtuação da honrosa dama.
“Essas leituras acalmavam-na, davam-lhe como uma vaga satisfação ao desejo. Chorando as dores das heroínas de romance, parecia sentir alívio às suas. […] Foi durante meses um devorar constante de romances. Ia-se criando no seu espírito um mundo artificial, e idealizado. A realidade tornava-se-lhe odiosa, sobretudo sob aquele aspecto da sua casa, onde encontrava sempre agarrado às saias um ser enfermo.”
Com o tempo, a leitura não saciou mais seus desejos carnais e sua vontade de viver outra realidade. D. Maria da Piedade, a “senhora modelo”, tornara-se adúltera, negligente à sua família, cujo doentes não podiam mais contar com seus cuidados. “A Santa tornava-se Vênus”, Eça de Queiroz escreve na conclusão do conto, narrando a nova vida da mulher que corria atrás de homem:
“[…]Um maganão odioso e sebento, da cara balofa e gordalhufa, luneta preta com grossa fita passada atrás da orelha e bonezinho de seda posto à cativa. Vem de noite às entrevistas de chinelo de ourelo: cheira a suor: e pede-lhe dinheiro emprestado para sustentar uma Joana, criatura obesa, a quem chamam na vila a bola de unto.”
Nesse ponto do conto, é possível notar a semelhança com o romance O Primo Basílio, do mesmo autor. Assim como Maria da Piedade, Luíza não tinha um marido presente, e a chegada de Basílio preencheu a lacuna de emoção e afeto que faltava na sua vida ociosa, terminando em traição. O mesmo ocorre com Maria da Piedade, Luíza deslumbrou-se severamente com as paixões intensas e os amores impossíveis contidos nos livros de romance, ambas ansiando em demasia viver tais histórias na vida real. Basílio, como Adrião, faz o tipo dândi: conquistador, vindo de fora, cheio de experiências e elegância. Predicados o suficiente para levar essas duas mulheres de casamentos frustrados à ruina.
O conto, por fim, mostra a decadência da mulher causada pelo homem e pela leitura excessiva de romances. Na primeira parte do texto, Eça descreve uma vida realista, o conformismo com o local, aceitação da teoria do determinismo, pois Maria da Piedade vinha de uma família conturbada, e o casamento, embora vantajoso por conta do dinheiro de João Coutinho, ainda era desgraçado e infeliz.
A dualidade é notada pelo léxico sombrio do início do texto, em contraste com o ápice da história; João Coutinho, um homem fraco, é o contraponto à descrição do herói romântico que “salva” a moça do seu sofrimento, que pertence a Adrião; o homem da cidade cheio de qualidades e experiências, contra o inválido João Coutinho, nascido e quase morto no campo, sem força o bastante para sequer sair de casa. Contudo, essa dualidade aparece até certo ponto, pois o final é tão triste para D. Maria da Piedade quanto o começo, senão pior.
Há a decadência da personagem que choca o leitor. Esse, por sua vez, é induzido, desde o início, a ter Maria da Piedade como uma mulher perfeita. Se o conto tivesse uma moral, um aviso, seria o de resignação para com a realidade, e o cuidado com a ficção romântica, que exibe possibilidades inalcançáveis ou desproporcionais à própria realidade.
REFERÊNCIAS
Disponível em: < https://educacao.globo.com/literatura/assunto/autores/eca-de-queiros.html>. Acessado em: 15/11/2017
Disponível em: <https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/realismo-portugues-resumo-contexto-historico-poesia-prosa-autores-dicas-e-questao-comentada/>. Acessado em: 15/11/2017
QUEIROZ, Eça de. No Moinho. 1902.
Aspirante a escritora nas horas vagas. Nas cheias, bancária, e quando não tem ninguém olhando, sou uma bruxa.