ANÁLISE #03: O PRÍNCIPE DAS TREVAS

 

ANÁLISE: Lucifer
Quadrinho (2000) | Série: (2015)

SINOPSE: Lucifer Morningstar é o Senhor do Inferno, porém estava entediado e infeliz exercendo seu cargo. Ele renuncia ao seu trono e abandona o seu reinado para tirar férias em Los Angeles, onde dá início a uma casa noturna, chamada Lux, com a ajuda de sua aliada demoníaca Mazikeen.

Sempre ouvimos falar de duas forças que regem o mundo: o bem e o mal. Consideradas, por muitos, opostas desde o início dos tempos até o seu findar, essas forças são centrais nas nossas vidas. Se somos bons, somos bons. Se somos ruins, somos ruins – não há meio termo. Essa falta de duplicidade dentro de nós gerou, na literatura, um maniqueísmo sem precedentes desde muito tempo atrás e que, se formos levar em consideração o tempo da divisão bíblica entre bem e mal até a contemporaneidade, rompeu-se faz menos tempo do que se imagina.

Claro que a humanidade, corrompida pelo seu próprio ego, tende a nunca admitir seus erros, sempre culpando uma força externa, vocês a conhecem bem com seus múltiplos nomes, mas talvez seja melhor recorrermos aos mais comuns e menos ofensivos, como Satã, Capeta, Senhor dos Demônios e Lúcifer. Claro que existem mais nomes para essa figura peculiar do que nós julgamos possível, inclusive, formas e estereótipos corporais, pois todas as culturas acabam que, universalmente, tendo um personagem que simbolize essa força maligna, como é o caso de Seth, na mitologia Egípcia, por exemplo.

No entanto, são poucos os que se questionam – nesse mar de julgadores sem precedentes – o que de fato simbolizaria essa figura mítica. Entre todos os personagens que possam representar esse elo com a maldade, a ganância e a mentira, o mais conhecido é o anjo caído Samael. Mas por que ele seria o mais conhecido entre o céu de possibilidades de divindades ou demônios? Isso ocorre tanto por conta da influência religiosa ocidental – católica ou cristã – nas mídias quanto pelo fato de que a Bíblia é o livro mais vendido de todos os tempos.

Dentro dessas inúmeras influências que as mídias podem fornecer, encontramos uma proposta muito peculiar – e encantadora – do autor célebre Neil Gaiman, conhecido no universo da literatura tanto por seus livros quanto pela revolução que fez no mundo dos quadrinhos, por obras como Deuses Americanos (American Gods), The Sandman ou Lugar Nenhum (Neverwhere). Que Neil Gaiman é um gênio, nós todos sabemos, mas por que falar sobre ele quando falamos sobre Lúcifer, seja a série ou o personagem?

Neil Gaiman foi o idealizador do personagem Lúcifer que aparece no selo Vertigo, a linha focada em um público adulto da DC Comics. Esse mesmo personagem é a inspiração para o Lúcifer (Tom Ellis) que aparece no seriado que estreou em 2016, distribuído pela Warner Bros e televisionado pela Fox. Contudo, embora Neil Gaiman tenha criado, quem colocou Lúcifer no papel, ou melhor, nos quadrinhos como um spin off foi Mike Carey.

Como assim? O Lúcifer foi criado pelo Neil Gaiman, mas quem escreveu foi o Mike Carey? E como assim “Lúcifer”, a narrativa, é um spin-off? São muitas informações para digerir em poucas palavras e, pior ainda, com nomes iguais. Então, vou fazer uma coisa melhor: vou contar para vocês a história de Lúcifer dos quadrinhos, que deu origem à série Lúcifer (2016).

A primeira aparição do personagem ocorre em The Sandman, quadrinho escrito por Neil Gaiman, no capítulo quatro, no qual Lúcifer, reinando ao lado de Azazel e Beelzebub, confronta Morpheus, o senhor dos Sonhos e o protagonista da história em questão. O confronto ocorre porque Morpheus foi aprisionado por um mortal e, nesse processo, perdeu todos os seus pertences, que são parte dele e são sua força. Um desses pertences, o elmo, está no inferno e Morpheus teve que ir buscá-lo.

Para os fãs de crossovers, ou seja, uma miscigenação de personagens de núcleos narrativos diferentes, The Sandman apanha um pouco de cada parte do universo da DC Comics, trazendo personagens de quadrinhos como a Liga da Justiça, John Constantine e também Etrigan, um demônio muito famoso da animação conhecida “Liga da Justiça: Sem Limites”, que guarda os portões do inferno e recebe Morpheus.

Morpheus, em uma batalha com a linguagem, ideia brilhante de Neil Gaiman, consegue seu elmo de volta. Contudo, antes de sair do inferno, Lúcifer decide confrontá-lo – o que não foi a decisão mais sábia, pois a resposta do senhor dos Sonhos é uma das mais incríveis e poéticas de todo o primeiro volume de The Sandman:

 

– Com ou sem o seu elmo, você não tem poder nenhum aqui… que força tem os sonhos no inferno?

– Que poder teria o inferno se os prisioneiros daqui não fossem capazes de sonhar com o céu?

 

Morpheus sai, mas o rancor fica dentro do coração de Lúcifer, que jura se vingar de tal injúria. Infelizmente, para o deus dos Sonhos, dois anos mais tarde, ele precisa voltar ao inferno – aviso que vou emitir as informações mais importantes para evitar spoilers – e precisa confrontar Lúcifer mais uma vez. Quando isso ocorre, The Sandman já está no seu capítulo 23, parte conhecida como Estação das Brumas.

Logo, o protagonista da série The Sandman se prepara para morrer, embora o sentido de morrer para ele seja um pouco distinto do nosso, obviamente. Dentro do universo da Vertigo, ou melhor, dentro de todo o universo da DC Comics, Lúcifer é o segundo mais poderoso, perdendo somente para o seu pai, chamado Presença ou, também, Yahweh, uma clara referência ao nome judaico de Deus, Yaveh.

Morpheus sabia que qualquer embate com Lúcifer seria decisivo, por isso, prepara-se para o confronto, que não acontece. Isso mesmo, esse confronto não existe. Lúcifer está esgotado, cansado de reinar e diz isso com todas as palavras durante o tempo em que ele e o senhor dos Sonhos estão no Inferno. O mais engraçado dessa cena é a expressão de Morpheus:

(Lúcifer diz que se demitiu do inferno e Morpheus fica chocado, sem saber o que dizer)

 

Lúcifer expulsa todos os demônios, algo que não ocorre no seriado, por exemplo, e decide trancar o Inferno, levando Morpheus com ele durante o caminho. No final, a única personagem que resta além dos dois é Mazikeen, serva leal e que diz amar o senhor dos Demônios e, em retribuição, Lúcifer a beija e agradece. Em The Sandman, ele ordena a ela que vá embora, porém, na série spin-off, podemos vê-la ao seu lado de novo.

Também ao contrário da narrativa da série, quem de fato é o responsável pelo corte das asas de Lúcifer é Morpheus. Lúcifer não somente pede para que o senhor dos Sonhos corte as suas asas, como também dá a ele as chaves do Inferno – e promete a ele que aquele lugar lhe traria muita infelicidade, ressaltando o quão foi nefasto vigiá-lo e cuidar dele durante todo aquele tempo.

Lúcifer aparece a priori em The Sandman com asas de anjo, porém, nos três capítulos da Estação das Brumas, suas asas são iguais às de um morcego, o que simbolizaria um par de asas de um demônio. Mais para frente, dentro da narrativa do spin-off, as asas vão aparecer de novo nas costas do senhor dos Demônios – mas não vou dizer como, nem quando e muito menos o porquê.

Definida a origem de Lúcifer, acredito que somos capazes de compreender um pouco mais da construção do personagem oferecida à nós por Neil Gaiman. Lúcifer é um personagem ferido emocionalmente, algo que não muda em nenhuma das mídias que o apresentam, e, mais importante, ele também não mente. Mesmo. Sempre cumpre com a sua palavra, visto que descumprir com ela seria o mesmo que mentir, e é extremamente poderoso, mas, provavelmente, por achar tudo tão tedioso, ele não utiliza nem metade dos seus poderes, somente a manipulação – na série – e nos quadrinhos você pode observar, além da manipulação, a força de um olhar. Isso mesmo. Com um olhar, ele pode fazer muitas coisas – e não estou dizendo de sensuais ou constrangedoras como no seriado, mas pode fazer você perder sua potência sexual ou vomitar ao ponto de quase perder suas tripas, coisas que ocorrem, respectivamente, em A Opção Estrela do Amanhã e no segundo ou terceiro capítulo da série de quadrinhos Lúcifer – embora eu acredite que alguns considerem essa habilidade parte de sua manipulação.

A personalidade dele, entre as duas mídias, é um tanto diferente. Enquanto na série, ele é capaz de se preocupar com humanos e cumprir o seu papel como alguém que pune os injustos, nos quadrinhos, a sua perspectiva é um pouco diferente. Lúcifer, nas HQs, é um personagem manipulador, egocêntrico e que está muito mais preocupado com a sua liberdade do que qualquer combate contra o crime. As duas personalidades, confesso, embora diferentes, são bem interessantes, porque a essência do personagem é mantida: ambos buscam liberdade, acima de tudo, e estão feridos. Eles precisam escapar das garras do pai como se precisassem respirar e não conseguissem. Uma das cenas mais interessantes dos quadrinhos, presente em A Opção Estrela do Amanhã, é o momento que ele não acredita estar trabalhando para o céu e até mesmo verbalizar aquilo era difícil.

Os quadrinhos possuem mais liberdade do que uma série televisiva quanto a discussões polêmicas sobre religião, por conta disso, se você busca mais filosofia – que existe na série, mas não é explorada a fundo – você realmente deve ler os quadrinhos. A filosofia e a questão primordial, que é mantida na série (2016), é se possuímos livre-arbítrio e a contínua culpabilização que Lúcifer carrega pelos erros dos homens.

 

(Lúcifer questiona a Morpheus o motivo pelo qual os homens continuam a culpá-lo por seus erros)

 

Todos cometemos erros, embora alguns prefiram culpar uma entidade do que a si mesmos. Lúcifer, tanto na série quanto nos quadrinhos, demonstra que o personagem que pressupomos malévolo, não necessariamente é. O personagem que esperamos que seja sanguinário ou que nos manipule, não necessariamente o é e o faz. Por que devemos acreditar em um livro que foi editado tantas vezes quanto a Bíblia que lemos atualmente?

Certo, eu fui um pouco além, mas é um fato comprovado e visto a partir de comparações entre o texto em hebraico e o texto em grego do Velho Testamento. A figura malévola oposta a Deus surgiu a partir de uma tradução. Anteriormente, Deus era uma figura que representava tanto o bem quanto o mal, porém, alguns religiosos achavam que isso não era muito positivo para o nome do Senhor, então, em “Os Setenta”, entre 285 a. C. e 247 a. C, surgiu – junto a essa tradução – a serpente. Nessa mesma tradução também surgiu a palavra diabolos, o mesmo que “acusador, caluniador”, originada do grego diaballein que significa “acusar falsamente, atacar”, pois dia tem o mesmo sentido que “através”, enquanto ballein tem como definição “jogar, lançar, atirar”. Foi a partir desse momento que Lúcifer ganhou a alcunha tanto de Senhor do Mal quanto do Deus da Mentira.

Você deve estar se perguntando sobre os nomes dele, como Samael e Lúcifer. Bem, Samael, na verdade, é um nome bem ácido porque ele significa algo como o veneno de Deus, pois, em hebraico, Sama significa veneno e El significa deus. Contudo, nem de todos os males do mundo são feitos os nomes de Lúcifer e, ao contrário de seu outro tratamento, Lúcifer é muito mais agradável, porque, a partir de sua origem latina, significa “aquele que traz a luz”, no caso, aglutinam-se duas palavras: lux – luz – e ferre – “portar, trazer”. Há também uma curiosidade peculiar sobre esse nome, pois esse era o nome do planeta Vênus, que era a primeira estrela da alvorada, mas, por conta de uma confusão bíblica, o nome passou a ser também do senhor do Inferno.

O sobrenome de Lúcifer, que seria Morningstar dentro da série e dos quadrinhos, traz juntamente consigo essa falha bíblica, pois a Estrela do Manhã, na verdade, faz referência a essa confusão. A partir do ponto de vista abordado dentro dos quadrinhos e ilustrado muitíssimo bem por Tom Kapinos, podemos ver que a confusão bíblica não seria somente a partir do nome, mas também de toda a estrutura da figura de Lúcifer. Vivemos em um mundo onde as divindades viraram metáfora, os mitos se tornaram contos de fadas. Por que não ultrapassar as barreiras do maniqueísmo e julgar a partir de nós mesmos o que é a liberdade, livre arbítrio e quem de fato deveríamos culpar pelos nossos erros?

John Milton, no século XVII, já havia escrito sobre essa figura uma citação muito interessante: “Melhor reinar no Inferno do que obedecer no Céu”. Lúcifer Morningstar gargalharia, não acha?

 

REFERÊNCIAS

BARRERA, Trebolle Julio. A Bíblia judaica e a Bíblia cristã: introdução à história da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1995.
BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do Brasil, 1969.
CAREY, M. Lúcifer – The Morningstar Option. Ilustration Scott Hampton. USA: DC Comics: Vertigo, 2000.
______. Lúcifer. Ilustration: Chris Weston, Dean Ormston, James Hodgkins, Peter Gross, Ryan Kelly. USA: DC Comics: Vertigo, 2000 – 2006.
GAIMAN, N. Sandman – volume 1, edição definitiva. Tradução de Jotapê Martins. São Paulo: Panini Books, 2010.
______. Sandman – volume 2, edição definitiva. Tradução de Jotapê Martins. São Paulo: Panini Books, 2011.
______. Sandman – volume 3, edição definitiva. Tradução de Jotapê Martins. São Paulo: Panini Books, 2012.
______. Sandman – volume 4, edição definitiva. Tradução de Jotapê Martins. São Paulo: Panini Books, 2013.
GINGRICH, F. Wilbur & DANKER, Frederick W. (Ed.). Léxico do Novo Testamento Grego-Português. São Paulo: Vida Nova, 1984
LIDDELL and SCOTT. Greek-English Lexicon. 7. ed. Nova Iorque: Oxford, 2001.
MILTON, J. O Paraíso Perdido. Tradução de Daniel Jonas. 2ª edição. São Paulo: Editora34, 2016.
STRONG, J. Dicionário Bíblico Strong: Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2002.
WAGNER, H. GOLDEN, C. BISSETTE, S. R. Príncipe de histórias: os vários mundos de Neil Gaiman. Tradução de Santiago Nazarian. São Paulo: Geração Editorial, 2011.