ANÁLISE #02: JANE AUSTEN NOS QUADRINHOS

 
 
ANÁLISE: Orgulho e Preconceito 
Livro (1813) | Filme (1995, 2005) | Quadrinho (2016) 
 
SINOPSE: Elizabeth e suas quatro irmãs estão impossibilitadas de herdar a propriedade de seu velho pai e enfrentam a ameaça do despejo. As irmãs devem garantir sua segurança financeira por meio do casamento, mas nossa heroína tem outros planos. Ela fez votos de se casar somente por amor. Seu olhar acaba capturado pelo distinto Sr. Darcy, mas quem irá salvar os Bennets? Elizabeth deve se casar por amor ou deve salvar sua família? Uma adaptação fiel e primorosa do clássico romance de Jane Austen para os quadrinhos.  Se é um aficionado por Literatura Inglesa, ou até mesmo por livros em geral, já deve alguma vez ter ouvido algo sobre Jane Austen, uma das autoras mais aclamadas da Era Georgiana, talvez até mesmo aquela responsável por levar o gênero romântico a novos públicos, que antes era restrito à bibliotecas privadas.
Vasconcelos afirma em Dez lições sobre o Romance Inglês no século XVIII que havia, cem anos antes de Austen, escritoras anônimas que dedicavam seu tempo para escrever histórias ordinárias sobre casos de amor improváveis ou sobre a pacata vida bucólica, houve dezenas de autoras ilustres depois com as temáticas mais variadas. Porém, Jane se destaca. E se destaca por uma série de motivos, mas o principal é a ousadia.

O romance era como um instrumento de expressão, denúncia e revolta em relação ao estilo de vida da época, mas não era fácil mulher publicar. Orgulho e Preconceito, por exemplo, levou duas décadas para ser publicado. As mulheres, geralmente, usavam pseudônimos, muito até mesmo masculinos, para preservarem sua identidade. Austen assinava como “Uma Senhora” os primeiros romances, anos depois usou o nome de batismo.

Contudo, o que tudo isso tem a ver com os quadrinhos? Muita coisa. Podemos fazer analogias simples como o preconceito com o gênero romântico em relação ao preconceito com os quadrinhos, até hoje presente, sendo considerado um “subgênero” e inferior à literatura.

Lembra quando falei da ousadia de Austen? Ela usava o gênero inferiorizado da época, o romance, para denunciar suas diversas regras sociais, a maioria envolvendo as mulheres, mas não fazia isso de qualquer jeito. Os quadrinhos, em paralelo, utilizando uma obra tão acalmada da literatura universal, também exibem sua alta capacidade e flexibilidade como um meio comunicativo. Sendo sincrético, ou seja, uma fusão de possibilidades, porém se baseando principalmente nas imagens; os quadrinhos seriam uma das plataformas mais controversas para adaptar um livro de 370 páginas. Ian Edginton e Robert Deas fizeram isso, transformaram um longo texto em prosa em um comic book composto por 140 páginas e centenas de quadrinhos.

Um texto em prosa não implica em palavras combinadas em sentenças num papel, de modo que há mais do que descrições e cópias de diálogos para transpor para os quadrinhos. Para entender como essa transposição acontece, é preciso entender o processo dialógico que acontece na adaptação de um texto para o outro. Segundo Koch, partindo do pensamento bakhtiniano, “[…] cada enunciado é um elo da cadeia muito mais complexa de outros enunciados”. Esse elo entre cadeias de enunciados é observado desde o texto de partida, Orgulho e Preconceito (1813), até o texto de chegada, Orgulho e Preconceito HQ (2016), e as referências tomadas no meio do caminho da adaptação.

Quando uma adaptação literária é feita, geralmente, o objetivo é “facilitar o acesso da juventude a obra de referência”. Desta forma, Orgulho e Preconceito, a partir do trabalho de Edginton e Deas, consegue atingir maior público. Entendam como uma estratégia de propagação de uma obra literária, não uma facilitação da leitura, como é comum classificarem uma adaptação. Deste ponto de vista, como afirma Vergueiro, o papel desses veículos que adaptam os textos em prosa está mais próximo de um “resgate”, uma homenagem a obras seculares e milenares.

O cinema é um meio para maior exposição da literatura e dos quadrinhos, porém essa relação dialógica não se resume apenas às plataformas paralelas com o mesmo fim em comum, no caso, o cinema; essa relação é uma conversa entre os veículos como uma soma para uma nova releitura do texto de partida. Os quadrinhos de Edginton e Deas também dialogam com o cinema:

O salão de festas em Meryton e o centro da cidade; a casa de Mr. e Mrs. Collins e seus ambientes; a mansão de Lady Catherine de Bourgh, cujo cenário no filme era o castelo de Burghley House; Pemberley, a esplêndida mansão de Mr. Darcy, ilustrada como Chatsworth House e como o Lyme Park, mansão também alugada para as filmagens do filme de Joe Wright (2005) e de Simon Langton (1995) respectivamente. Netherfield Park, mansão alugada por Mr. Bingley, assemelha-se às mansões usadas como cenário nas adaptações de Orgulho e Preconceito dos anos de 1980 e 1995 também, Well Vale e Edgcote Hall, concomitantemente; a cena em que Sir William Lucas introduz Elizabeth à Mr. Darcy, já dialoga semioticamente com as cenas reproduzidas pela série de Simon Langton (1995).

O cenário é uma composição importante quando se fala a respeito do trabalho de Jane Austen, que retratava muito bem a época em que vivia. Não somente o cenário físico, mas o próprio cenário no aspecto social e político, como é o caso do tratamento, por exemplo, das mulheres.

A mulher trazida à tona por Austen, a icônica Mrs. Bennet. Assim como as outras mães escritas por Jane Austen, como analisa Mitton, é descrita como uma mulher tola, ignorante, sem senso de educação. Outras personagens como as irmãs mais novas de Lizzy também são caracterizadas assim, o próprio Sr. Bennet elege-as como “[…] as moças mais tolas do país”. O favoritismo do Sr. Bennet pela segunda filha mais velha fica evidente no trecho a seguir e ao longo de toda a obra, porém ele era um instrumento na história para criticar determinados perfis de mulheres e fazia isso com as próprias filhas. Para ele, a beleza de Jane e o bom humor de Lydia não as livram da condição de “tolas e ignorantes”.

– Creio que isto é excesso de escrúpulos da sua parte. Tenho certeza que Mr. Bingley terá muito prazer em vê-la. Além disso eu lhe enviarei algumas linhas por seu intermédio, assegurando-lhe que darei o meu consentimento para que ele se case com qualquer das meninas que escolher, embora devesse acrescentar um elogio para a minha pequena Lizzy. – Desejo que não faça tal coisa. Lizzy não é melhor do que as outras. Estou convencida de que não tem nem metade da beleza de Jane. E nem sequer metade do bom humor de Lydia. Mas você não cessa de manifestar a sua preferência por ela. – Nenhuma delas tem muito o que se lhes recomende, respondeu Mr. Bennet -; são tolas e ignorantes como as outras moças. Mas Lizzy é realmente um pouco mais viva do que as irmãs.

A crítica de Austen sobre os predicados dessas mulheres é suavizada pela comicidade das cenas, visto que sem o toque bem-humorado da ironia da autora, a Mrs. Bennet seria apenas uma senhora mal-educada e egoísta. Logo nos primeiros capítulos do romance, é discutida a imposição de padrões para as mulheres nos séculos XVIII e XIX, assim como uma denúncia das diferenças sociais, o maior contraste entre Caroline Bingley, que inicia a fala, e Elizabeth Bennet:

– […] Nenhuma mulher pode ser realmente considerada completa se não se elevar muito acima da média. Uma mulher deve conhecer bem a música, deve saber cantar, desenhar, dançar e falar as línguas modernas a fim de merecer esse qualitativo, e além disso, para não o merecer senão pela metade, é preciso que possua um certo quê em sua maneira de andar, o tom de voz e no modo de exprimir-se. – Sim, deve possuir tudo isso – acrescentou Darcy. – E acrescentar ainda alguma coisa mais substancial: o desenvolvimento do seu espírito pela leitura intensa. – Já não me espanto de que conheça apenas seis mulheres completas, espanto-me é de que conheça alguma.

A Sra. Bennet, do início ao fim mantém o seu gênio intacto, sua descrição é a seguinte: “[…] tratava-se de uma senhora dotada de inteligência medíocre, pouca altura e gênio instável. […] A única preocupação de sua vida era casar as filhas. Seu consolo, fazer visitas e saber novidade”. Nos capítulos finais, nem sua apatia pelo Sr. Darcy foi bastante para aplacar a felicidade de ter uma filha casada com um homem rico, que sempre fora o seu objetivo inicial. Um exemplo claro da riqueza de construção e manutenção dos personagens de Austen. Os personagens mostrados na obra como sensatos, embora cometendo erros, têm uma evolução ao longo do enredo, como o Sr. Darcy; enquanto estes como Sra. Bennet e Lydia Bennet, escritas provavelmente como paródias de pessoas do círculo social de Austen, permanecem a história toda sem mudanças.

Personagens caricatos, marcantes, comuns no cotidiano, são coringas para plataformas como os quadrinhos. Edginton e Deas, na elaboração de Orgulho e Preconceito (2016), usam a torto e direito essas características fortes das personagens em seus traços, no tom de voz (representado pelos balões), no tom das vestes, nas posições na qual são desenhados. Com a pobreza de descrição de espaço e de personagem (fisicamente) de Jane, o apoio do cinema, acima citado, foi claro, mas não tirou dos produtores da HQ o privilégio da criatividade e originalidade em seu próprio meio de comunicação.

Em Orgulho e Preconceito em HQ, a intertextualidade é explicitada, não dependendo do conhecimento prévio do leitor do texto de partida. Os quadrinhos de Ian Edginton e Robert Deas podem ser seguramente lidos por uma pessoa que desconhece a obra literária de Austen, e ainda assim, ser bem aceito, apreciado e compreendido como a história original, o que marca muito bem uma adaptação fiel.

Ainda com os fenômenos de adaptações cinematográficas de clássicos das revistas em quadrinhos de editoras aclamadas, como a DC Comics e a Marvel, o olhar para este meio de comunicação ainda carrega a impressão de inferioridade em relação à literatura. Entretanto, há características particulares dos quadrinhos que o texto em prosa não tem e não passa ao leitor. Mesmo sendo o mesmo texto, por conta do meio diferente no qual fora apresentado, a experiência do leitor é diferente. Essa experiência de leitura distinta que agrega valor de unicidade a uma obra de adaptação, que mesmo tendo partido de outra, tem seu próprio predicado.

Não é de hoje, e não são apenas as histórias em quadrinhos, que dialogam com a arte literária em busca de inspiração para suas adaptações. Dada a antiguidade, prestígio social e força da literatura, não há nada de espantoso nisso. Nesse caso, os quadrinhos e o cinema buscam apoio da literatura, normalmente resgatando seus enredos, mas não pensando em comparação de recursos próprios das linguagens.

Essa relação dialógica da literatura para o cinema, do cinema para o quadrinho e vice-versa é um processo que coloca as obras em um ciclo praticamente sem fim, fazendo com que livros, revistas em quadrinhos e filmes hibernando pelo tempo sejam atualizados para os dias atuais.

O ajustamento do texto em prosa para o texto em séries de quadrinhos é um ganho não só para a literatura, por abranger seu formato e alcance, enquanto segue as exigências do tempo atual, como é uma aquisição riquíssima para jovens que já possuem uma preferência quase religiosa com as vibrantes revistas em quadrinho. Para contextualizar com esses leitores, a adaptação toma o papel importante de manter atual e acessível obras canônicas, “dada a antiguidade, prestígio social e força” que elas possuem. É um ganho enorme também para a maior valorização dos quadrinhos e sua ascensão a partir de outros meios que não seja os blockbusters hollywoodianos. Essa nova era é composta por leitores mais “práticos” e trouxe de volta a nostalgia do pequeno e fino caderno de brochura, colorido e de fácil leitura, tão distintos dos tradicionais retangulares livros.

REFERÊNCIAS

AUSTEN, Jane; tradução CARDOSO, Lúcio. Orgulho e Preconceito. Edição Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
AUSTEN, Jane; tradução PORTOCARRETO, Celina. Orgulho e Preconceito. Porto Alegre: L&MP Pocket, 2014.
DEAS, Robert; EDGINTON, Ian. Orgulho & Preconceito. São Paulo: Nemo, 2016.
KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender os sentidos do texto. 3ª Ed. – São Paulo: Contexto, 2012.
MITTON, G. E.; Jane Austen and Her Times, 1775-1817. New York: Barnes & Noble, 2007.
VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez lições sobre o romance inglês do século XVIII. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
VERGUEIRO, Waldomiro. In: et al. Quadrinhos e Literatura – Diálogos Possíveis. São Paulo: Criativo, 2014.